Foi num dia de inverno que parecia de verão, pois tínhamos feito imensas coisas e agora estávamos a voltar para casa. Eu olhava para a auto-estrada e o pôr do sol parecia agora, porque os dias eram curtos e as lâmpadas da auto-estrada e a conversa animada tínham-nos distraído de que já era bem de noite. Ainda nem tínhamos jantado. Era aquela sensação conhecida daqueles que já vieram do Alentejo à noite para Lisboa. Tínhamos acordado de madrugada, já tínhamos estado em três cidades, feito amigos novos, rido, gritado, corrido, lutado pela transformação democrática de Portugal, entre outras coisas.
Foi quando, ao volante, aquele homem calmo, sereno, sorridente, moreno e discreto, que organiza missões humanitárias em centenas de países, me disse que somos nós que escolhemos a família em que nascemos.
Dentro de mim o carro travou dos cento e vinte quilómetros por hora para os menos cento e vinte quilómetros por hora, demos três cambalhotas no ar sobre a auto-estrada e aterrámos num mundo novo, embora, cá fora, tudo continuasse igual, talvez um pouco mais escuro mas mais brilhante (como as paredes dos templos japoneses no escuro). O silêncio no carro era apenas cortado pelo sorriso do condutor.
Ainda hoje, agora, aqui, vivo aquele instante e a cada dia que passa sei menos como lhe agradecer.