Eu trabalho à noite. Saio por volta das quatro e meia da manhã. A hora de saída que está combinada é às quatro, mas uma pessoa acaba sempre por ficar mais uns minutos a arrumar as coisas e à conversa.
Aconteceu que hoje saí mais cedo. Eram umas três horas quando o patrão disse que por hoje estávamos terminados. E por hoje terminados arrumei as coisas. E saí.
Este inverno tem chovido imenso em Lisboa. Todos os dias chove e a humidade no ar é imensa, parece que conseguimos comê-la. Além disso, está muito frio. Atravessava a IC19, vazia (uma visão incrível). Chovia. Aquela estrada tão deserta e eu ali, o seu único dono. Aquela estrada tão deserta e eu a sentir-me tão sozinho.
Pensei que ainda queria ver alguma pessoa antes de ir dormir. Algum ser humano, alguém vivo. Antes de partir para o dia de amanhã, queria sentir que hoje ainda olhava para alguém que nunca tivesse visto antes, ou que fazia alguma coisa que nunca tinha feito.
Ia na IC19 e saí na primeira saída que apareceu. Fui conduzindo pelo subúrbio a dentro, sem saber para onde ia. Fui atravessando as ruas desertas e húmidas, iluminadas pela luz quente laranja.
Não sei como é ao pé das vossas casas, nem que cor vocês associam à noite. Mas aqui nos subúrbios, à noite é tudo laranja. As luzes laranja reflectiam-se nas poças de água na estrada escura, nas janelas escuras e nas montras escuras. Ninguém na rua. Não encontrei nem uma pessoa.
Caramba, nem um gangue! No meu tempo, no subúrbio à noite, havia gangues. Haviam grupos de pessoal novo a atirar caixotes do lixo para a estrada. Havia pessoal sentado em muros a fumar charros. Agora já não há nada. Só pilhas e pilhas de janelas sem luz amontoadas em forma de prédios (às vezes, com sorte, vemos a meio da noite uma luz de cozinha acesa - basta ver a cor da luz para se saber que é uma cozinha, assim uma espécie de branco embaciado - onde alguma mulher bebe chocolate quente por não conseguir dormir ou algum filho se masturba - nesses casos normalmente só vemos a luz da televisão acesa).
À noite no subúrbio, não se vendo gente, vemos milhões de carros vazios, assim uma espécie de carcaças abandonadas que são os corpos reais das pessoas que ficam ali quando elas se despem e levam o essencial para casa.
Que não haja ninguém na rua por estar frio eu ainda posso tentar perceber, mas que à noite no subúrbio, já nem nos carros se veja animação? É muito triste. Nem um só vidro de carro embaciado, nem um só par de pernas nuas oscilando. Depois dizem que não há bebés. Se não se faz amor à noite faz-se quando?
Antigamente, no subúrbio, fossem gangues, fossem apaixonados, havia pelo menos pessoas que escolhiam ser livres, tanto quanto podiam. Não eram capitalistas. Mesmo que fossem só adolescentes, eram pessoas que escolhiam não se limitar a seguir um plano. Tinham a ousadia de sair de casa à hora que quisessem. A grande coragem de se abrir às experiêcias de vida e à natureza selvagem e incontrolável do Ser Humano. Felizes nós porque já não há bandidos à noite na rua. Sim, não há porque estão presos a um estilo de vida que nos afasta uns dos outros. Presos à solidão.
Continuei a conduzir. A ver os prédios, as lojas, os cantos misteriosos. E foi assim que cheguei à minha escola primária.
A penúltima vez que lá tinha ido fora há uns dois anos. A última, foi num sonho que tive o Verão passado quando dormi na casa nova do meu amigo mais antigo, com quem passei a escola primária.
Não sei como acontece com vocês, mas comigo, eu sonho sempre com os lugares muito adulterados em relação à realidade. Nos meus sonhos, todos os lugares são uma construção enorme, grandiosa, épica e labiríntica sobre a estrutura base do lugar com que sonho.
Mas vendo a minha escola primária, às três e tal da manhã, cá de fora das grades, ela parecia igual ao sonho. A minha escola primária estava mais real do que a realidade!
Andei de carro à volta dela. Parei o carro e saí. Ali estava eu, um grandecíssimo homem, enorme e de barba, que se eu vira ali à quinze anos atrás me faria sentir muito medo.
Olhei através das grades, à procura da árvore à qual trepávamos, eu e os meus amigos, que se chamava Casa da Árvore. E ela está lá. Vinte anos depois. E também cresceu. Está já velha, desgastada e enfraquecida. No meio de coisas novas.
Olhei melhor e agora vi muitos lugares que não reconheci, muitos espaços que não pareciam os mesmos. Pensei em saltar a grade da escola, mas não saltei. Queria partir à descoberta daquele lugar da minha infância.
Continuei a olhar, a tentar distinguir algo conhecido no escuro. E foi aí que as vi. Num cantinho escuro do pátio, entre dois muros, no espaço de uns quatro metros quadrados, continuam a formar-se, com a chuva e a terra, as mesmas poças de lama de sempre.
Vinte anos de poças de lama no mesmo lugar.
Uma das memórias antigas que tenho daquele espaço (que é muito mais que uma escola) é de, no cantinho ao pé da Casa da Árvore, passar a correr por cima das grandes poças de lama, atrás de outro menino com um pau na mão, um rapaz de óculos redondos um ano mais velho que eu (que hoje continuo a ver passar na rua e com quem nunca falei), com uma camisola vermelha rota debaixo do braço, no sovaco, coisa que eu nunca vira antes, e de eu pensar Como é que ele fez aquele buraco debaixo do braço? e de ele começar a atirar bolas de lama para os outros e eu e mais dois amigos nos desviarmos para não apanharmos também, porque as nossas mães iam ficar lixadas se chegássemos com uma bola de lama estampada nas nossas camisolas. Isto depois de termos estado a brincar à volta das grandes poças de água e lama que ali sempre se formavam enquanto começara já a chover e as contínuas já tinham chamado todos os meninos mas nós tínhamos desobedecido e ficado ali sozinhos até termos ficado só nós, rebeldes, o silêncio cinzento e a chuva, naquele lugar algo escondido (sim, porque as minhas escolas sempre foram construídas em terrenos íngremes, pelo que tinham montes de patamares que permitiam milhares de esconderijos), a sentirmos o recreio vazio, a brincar ao som da água a cair, com um silêncio próximo do que ouvi esta noite enquanto olhava para aquelas mesmas poças, que não esperava jamais reencontrar, que só vi por, no escuro, reflectirem as luzes laranja do meu país à noite.
E foi naquelas poças que encontrei a pessoa que estava à procura de ver antes de dormir. Esta noite recolhi o menino que me pareceu que tinha ficado vinte anos ali, à chuva e ao frio, com a camisola suja de lama e as costas molhadas, à porta da escola à minha espera, e que eu me tinha esquecido de vir buscar.
Abri-lhe a porta. Entrámos os dois no carro. E partimos.
Ao voltar para casa, no meu carro preto de pára-choques rebentado, senti uma força estranha no peito. Sabem aquela sensação, quando é Natal, de que o Natal veio demasiado cedo este ano? É que sinto que para mim o Natal foi hoje. O dia em que senti que era Natal foi hoje. Senti-o tão forte. Apetece-me estar com a minha família à volta de uma lareira a dar presentes, com crianças à minha volta. Talvez seja isso. Não há Natal sem crianças.
A minha ex-namorada não é do subúrbio. Uma pessoa impaciente e ansiosa, andou numa escola primária noutra parte da cidade. A escola primária em que ela andou já não existe. Foi transformada numa rotunda, ao pé da casa dela. Por isso esta noite, dois anos ou mais depois, perdoo-lhe tudo.
PS: Os erros ortográficos deste texto não são só culpa deste computador não ter corretor ortográfico. Também são saudosismo.
Aconteceu que hoje saí mais cedo. Eram umas três horas quando o patrão disse que por hoje estávamos terminados. E por hoje terminados arrumei as coisas. E saí.
Este inverno tem chovido imenso em Lisboa. Todos os dias chove e a humidade no ar é imensa, parece que conseguimos comê-la. Além disso, está muito frio. Atravessava a IC19, vazia (uma visão incrível). Chovia. Aquela estrada tão deserta e eu ali, o seu único dono. Aquela estrada tão deserta e eu a sentir-me tão sozinho.
Pensei que ainda queria ver alguma pessoa antes de ir dormir. Algum ser humano, alguém vivo. Antes de partir para o dia de amanhã, queria sentir que hoje ainda olhava para alguém que nunca tivesse visto antes, ou que fazia alguma coisa que nunca tinha feito.
Ia na IC19 e saí na primeira saída que apareceu. Fui conduzindo pelo subúrbio a dentro, sem saber para onde ia. Fui atravessando as ruas desertas e húmidas, iluminadas pela luz quente laranja.
Não sei como é ao pé das vossas casas, nem que cor vocês associam à noite. Mas aqui nos subúrbios, à noite é tudo laranja. As luzes laranja reflectiam-se nas poças de água na estrada escura, nas janelas escuras e nas montras escuras. Ninguém na rua. Não encontrei nem uma pessoa.
Caramba, nem um gangue! No meu tempo, no subúrbio à noite, havia gangues. Haviam grupos de pessoal novo a atirar caixotes do lixo para a estrada. Havia pessoal sentado em muros a fumar charros. Agora já não há nada. Só pilhas e pilhas de janelas sem luz amontoadas em forma de prédios (às vezes, com sorte, vemos a meio da noite uma luz de cozinha acesa - basta ver a cor da luz para se saber que é uma cozinha, assim uma espécie de branco embaciado - onde alguma mulher bebe chocolate quente por não conseguir dormir ou algum filho se masturba - nesses casos normalmente só vemos a luz da televisão acesa).
À noite no subúrbio, não se vendo gente, vemos milhões de carros vazios, assim uma espécie de carcaças abandonadas que são os corpos reais das pessoas que ficam ali quando elas se despem e levam o essencial para casa.
Que não haja ninguém na rua por estar frio eu ainda posso tentar perceber, mas que à noite no subúrbio, já nem nos carros se veja animação? É muito triste. Nem um só vidro de carro embaciado, nem um só par de pernas nuas oscilando. Depois dizem que não há bebés. Se não se faz amor à noite faz-se quando?
Antigamente, no subúrbio, fossem gangues, fossem apaixonados, havia pelo menos pessoas que escolhiam ser livres, tanto quanto podiam. Não eram capitalistas. Mesmo que fossem só adolescentes, eram pessoas que escolhiam não se limitar a seguir um plano. Tinham a ousadia de sair de casa à hora que quisessem. A grande coragem de se abrir às experiêcias de vida e à natureza selvagem e incontrolável do Ser Humano. Felizes nós porque já não há bandidos à noite na rua. Sim, não há porque estão presos a um estilo de vida que nos afasta uns dos outros. Presos à solidão.
Continuei a conduzir. A ver os prédios, as lojas, os cantos misteriosos. E foi assim que cheguei à minha escola primária.
A penúltima vez que lá tinha ido fora há uns dois anos. A última, foi num sonho que tive o Verão passado quando dormi na casa nova do meu amigo mais antigo, com quem passei a escola primária.
Não sei como acontece com vocês, mas comigo, eu sonho sempre com os lugares muito adulterados em relação à realidade. Nos meus sonhos, todos os lugares são uma construção enorme, grandiosa, épica e labiríntica sobre a estrutura base do lugar com que sonho.
Mas vendo a minha escola primária, às três e tal da manhã, cá de fora das grades, ela parecia igual ao sonho. A minha escola primária estava mais real do que a realidade!
Andei de carro à volta dela. Parei o carro e saí. Ali estava eu, um grandecíssimo homem, enorme e de barba, que se eu vira ali à quinze anos atrás me faria sentir muito medo.
Olhei através das grades, à procura da árvore à qual trepávamos, eu e os meus amigos, que se chamava Casa da Árvore. E ela está lá. Vinte anos depois. E também cresceu. Está já velha, desgastada e enfraquecida. No meio de coisas novas.
Olhei melhor e agora vi muitos lugares que não reconheci, muitos espaços que não pareciam os mesmos. Pensei em saltar a grade da escola, mas não saltei. Queria partir à descoberta daquele lugar da minha infância.
Continuei a olhar, a tentar distinguir algo conhecido no escuro. E foi aí que as vi. Num cantinho escuro do pátio, entre dois muros, no espaço de uns quatro metros quadrados, continuam a formar-se, com a chuva e a terra, as mesmas poças de lama de sempre.
Vinte anos de poças de lama no mesmo lugar.
Uma das memórias antigas que tenho daquele espaço (que é muito mais que uma escola) é de, no cantinho ao pé da Casa da Árvore, passar a correr por cima das grandes poças de lama, atrás de outro menino com um pau na mão, um rapaz de óculos redondos um ano mais velho que eu (que hoje continuo a ver passar na rua e com quem nunca falei), com uma camisola vermelha rota debaixo do braço, no sovaco, coisa que eu nunca vira antes, e de eu pensar Como é que ele fez aquele buraco debaixo do braço? e de ele começar a atirar bolas de lama para os outros e eu e mais dois amigos nos desviarmos para não apanharmos também, porque as nossas mães iam ficar lixadas se chegássemos com uma bola de lama estampada nas nossas camisolas. Isto depois de termos estado a brincar à volta das grandes poças de água e lama que ali sempre se formavam enquanto começara já a chover e as contínuas já tinham chamado todos os meninos mas nós tínhamos desobedecido e ficado ali sozinhos até termos ficado só nós, rebeldes, o silêncio cinzento e a chuva, naquele lugar algo escondido (sim, porque as minhas escolas sempre foram construídas em terrenos íngremes, pelo que tinham montes de patamares que permitiam milhares de esconderijos), a sentirmos o recreio vazio, a brincar ao som da água a cair, com um silêncio próximo do que ouvi esta noite enquanto olhava para aquelas mesmas poças, que não esperava jamais reencontrar, que só vi por, no escuro, reflectirem as luzes laranja do meu país à noite.
E foi naquelas poças que encontrei a pessoa que estava à procura de ver antes de dormir. Esta noite recolhi o menino que me pareceu que tinha ficado vinte anos ali, à chuva e ao frio, com a camisola suja de lama e as costas molhadas, à porta da escola à minha espera, e que eu me tinha esquecido de vir buscar.
Abri-lhe a porta. Entrámos os dois no carro. E partimos.
Ao voltar para casa, no meu carro preto de pára-choques rebentado, senti uma força estranha no peito. Sabem aquela sensação, quando é Natal, de que o Natal veio demasiado cedo este ano? É que sinto que para mim o Natal foi hoje. O dia em que senti que era Natal foi hoje. Senti-o tão forte. Apetece-me estar com a minha família à volta de uma lareira a dar presentes, com crianças à minha volta. Talvez seja isso. Não há Natal sem crianças.
A minha ex-namorada não é do subúrbio. Uma pessoa impaciente e ansiosa, andou numa escola primária noutra parte da cidade. A escola primária em que ela andou já não existe. Foi transformada numa rotunda, ao pé da casa dela. Por isso esta noite, dois anos ou mais depois, perdoo-lhe tudo.
PS: Os erros ortográficos deste texto não são só culpa deste computador não ter corretor ortográfico. Também são saudosismo.
7 comentários:
Tu, Pedro, tu és muito bonito.
Parece que o perdão tomou conta deste princípio de ano. E ainda bem.
Ontem a noite terminei tudo que tinha de fazer, me preparei para ir à cama, e quando me deitei nela não consegui mais cerrar os olhos. Só fui dormir por volta das 3 da madrugada. Agora vejo porque. Porque alguém do outro lado do oceano havia tirado o cachecol cinzento!
Foste atrás da mesma experiência que tive nestes dias! De ir ter com as velhas árvores da infância. Uma das minhas paineiras, que era a cadeia do "polícia e ladrão" faleceu e foi extinta (o que trouxe lágrimas aos olhos). No entanto a outra, mesmo que cortada e só restando um corajoso e persistente toco, (tive a nítida impressão) me extendeu um galho para comprimentar após estes anos de ausência. Foi um reencontro como este, consigo mesmo. Um natal reinventado, o nascimento de um outro menino sagrado.
Obrigado Joana. Fazes-me corar assim :) É verdade, parece que só é mesmo Natal quando há perdão. Afinal os senhores antigos tinham razão.
Querida Mã, meu querido E.T., então estavas a ver tudo! :) que incrível! Desculpa então se não te deixei dormir! Devia ter tido cuidado por tua causa, afinal de contas, tu trabalhas. Eheh.
Tenho pena das tuas árvores. Se quiseres partilho as minhas contigo. Até podemos pedir aos senhores da escola para entrar e subimos lá acima os dois! Queres?
Eu tenho a certeza que as tuas arvorinhas te estenderam a mão pois onde quer que passes, tu levas vida às coisas. Aposto que as tuas árvores se lembravam de ti. Como esquecer-te? (PS: beijo na ponta desse dedo de E.T.)
Beijos para as duas professoras primárias
Elliot, seria o melhor sonho que poderia ter, subir numa árvore contigo! Faremos isso assim que pudermos, e assim celebraremos uma infância compartilhada e eterna.
Um beijo telepático para o meu querido
já nem nos carros se veja animação? É muito triste. Nem um só vidro de carro embaciado, nem um só par de pernas nuas oscilando. Depois dizem que não há bebés. Se não se faz amor à noite faz-se quando?
ri tanto com isto.
cheirei a infância de alguém que não conheço e cheirou-me à minha.
o saudosismo respira-se.
obrigada por isto
Fica combinado mayra.
M., obrigado eu
É espantoso: não sou só eu que ando numa fase de reviver o passado...! :)
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