terça-feira, 1 de março de 2011

Não há desculpas

Foi num dia de inverno que parecia de verão, pois tínhamos feito imensas coisas e agora estávamos a voltar para casa. Eu olhava para a auto-estrada e o pôr do sol parecia agora, porque os dias eram curtos e as lâmpadas da auto-estrada e a conversa animada tínham-nos distraído de que já era bem de noite. Ainda nem tínhamos jantado. Era aquela sensação conhecida daqueles que já vieram do Alentejo à noite para Lisboa. Tínhamos acordado de madrugada, já tínhamos estado em três cidades, feito amigos novos, rido, gritado, corrido, lutado pela transformação democrática de Portugal, entre outras coisas.

Foi quando, ao volante, aquele homem calmo, sereno, sorridente, moreno e discreto, que organiza missões humanitárias em centenas de países, me disse que somos nós que escolhemos a família em que nascemos.

Dentro de mim o carro travou dos cento e vinte quilómetros por hora para os menos cento e vinte quilómetros por hora, demos três cambalhotas no ar sobre a auto-estrada e aterrámos num mundo novo, embora, cá fora, tudo continuasse igual, talvez um pouco mais escuro mas mais brilhante (como as paredes dos templos japoneses no escuro). O silêncio no carro era apenas cortado pelo sorriso do condutor.

Ainda hoje, agora, aqui, vivo aquele instante e a cada dia que passa sei menos como lhe agradecer.

10 comentários:

Mayra disse...

você escreve bem que dói.

Sarah disse...

Gostei muito mas é a primeira vez que não entendo (li quase todos os posts).
A familia na qual nos tornamos quem queremos ser?? E isso?

Calor Humano disse...

:) obrigado Mayra.

Sim Sarah! É isso mesmo ;)

Sarah disse...

Então, sim, podemos dizer que escolhemos mas dentro do que o nosso capital social e cultural (cf. Bourdieu) nos permite ver(herança)e o que o nosso super-ego nos dita fazer (experiência/infância).

Escolhemos todos mas não temos a mesma escolha possivel. Para uns é muito mais reduzida do que para outros!

Calor Humano disse...

Não, então não era isso.

Sim, nós escolhemos a família na qual nos tornamos quem queremos ser, mas ele não se referia à família que criamos, mas sim à família em que nascemos.

Escolhemos antes de nascer.

Sarah disse...

Que loucura então! Até no principio da reincarnação não se escolhe o nascimento.

Essas palavras me deixam mesmo perplexa. Será uma metáfora que não percebi?

O nascimento não é a primeira injustiça que temos de enfrentar?

Calor Humano disse...

Segundo esta teoria, não.

Segundo esta teoria nós escolhemos nascer nas famílias onde nascemos para, através das características dessa família, boas ou más, nos tornarmos quem somos. Pois é através delas a única maneira de nos tornarmos quem somos.

As dificuldades do nosso ponto de partida servem para nos tornar mais sábios, fortes, pressistentes, sensíveis! As dificuldades são boas para nós!

O exemplo dos nossos pais que tantas vezes lamentamos, serve para aprendermos como não devemos ser, permitem-nos ver os maus caminhos.

As dificuldades pelas quais podemos passar ensinam-nos a lidar com as dificuldades, pois a vida é isso.

A partir daí, nunca mais podemos usar os nossos pais como desculpa para os nossos falhanços. Pois aquilo pelo que nos fizeram passar é que nos tornou a pessoa especial que somos.

Mayra disse...

que paz de espírito esse pensamento traz.

:)

Sarah disse...

Este fim de semana, vi um video da Ingrid Betancourt. Ela dizia que tinha compaixão pelos farcs (enquanto pessoas e não organização) porque eram putos entre 13 e 18 anos que tinham por unica escolha ser farc e violentar ou fabricante de droga e ser violentados...

Pensei "pois a escolha é mesmo um pensamento da classe média ocidental".

Calor Humano disse...

Não percebeste o meu racciocínio.

Eles merecem o nosso respeito por isso mesmo.

Por terem escolhido um caminho tão duro, ao passo que nós escolhemos um tão fácil e ainda nos queixamos.