quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Melhores do Ano

Comovem-me as listas de melhores do ano.
Comovem-me os que insistem em as compilar.
Comovem-me as pessoas que as publicam do seu computador para o mundo, pondo muito pensamento nisso, sabendo que o mundo está interessado e aguarda ansiosamente pelas escolhas deles, porque só eles sabem algo que todos precisamos saber, e o como isso faz deles importantes.
Comove-me a forma, empenho, dedicação e concentração que põem nisso, de quem sabe que no fim, são aquelas escolhas que os definirão no grupo de amigos, junto das pessoas com quem querem estar, aos olhos dos outos de quem é preciso ter o respeito para, por sua vez, se ser respeitado por aquela pessoa que queremos que goste de nós.

Mas o que me impressiona realmente é como essas listas são todas só de discos e filmes, e pior, afinal, todos os mesmos em todas as listas. Todos escolhidos por um festival organizado por franceses numa vila agradável à beira do Mediterrâneo, e por um site chamado Pitchfork, aos quais, afinal, o ato de fazer a lista é apenas um juramento de fidelidade.

E no entanto, também eu tenho os meus melhores do ano.


A minha lista de melhores do ano começa em Janeiro, quando passei o mês mais feliz da minha vida, com ela.
De mãos dadas conheci um Império. No Norte, uma pontinha do Sertão, terra mítica, e fiz talvez a coisa mais emocionante da minha vida: cavalgar pelas dunas de tronco nu, completamente livre num cavalo, só eu, ele, ela, o cavalo dela e a areia de um país dentro de um país feito de deserto à beira mar de quilómetros infinitos. E começou a chover e o cavalo falava comigo. Eu corria atrás dela, que é selvagem como os bichos mais bons. Esses, que ficavam parados sozinhos no meio da paisagem, numa terra onde as auto-estradas para os jipes andarem são a areia molhada pelo oceano ao nascer do Sol vermelho-sangue, ondulando paralelos à rebentação, desenhando curvas de trilhos como os bichos, que as crianças brincavam de matar com pedras. A cidade de ruas de areia que passou a ruas de mar. Os sapos nos nossos pés. Comer assim juntos e valer a pena comer e tudo o resto. A alegria em todos os poros que nos dá uma alma gémea. Nunca na vida ter começado um ano com sequer um décimo de tanta esperança. E depois viver a História ao vivo, e ver como na Europa estamos tão mortos, na cidade da Bahía de São Salvador, onde os escravos livres me disseram que tomaram a cidade de nós, e que agora tentam viver de nos mostrarem aquilo que já foi nosso. Sentir a minha casa mais perto do que nunca. O coração a bater como se fosse a primeira vez que visse ao vivo a minha Mãe que vira durante vinte anos em fotografias e julgava morta, ou pior, nunca nascida. Fazer a casa numa ruína. A voz da minha mulher no ar. A paixão dela. O túmulo do homem que plantou coqueiros em metade da superfície da terra. Os únicos azulejos que mostram a cidade onde nasci que, quando nasci, já não existia. A intimidade com os espíritos dos deuses vivos nos corpos de uma família que era toda uma cidade, numa casa humilde de luzinhas acesas no morro Vasco da Gama. A cidade que Lisboa quis ser, a gémea irmã, como até agora só tinha conhecido essa cidade com nome de Rio. João a cantar na casa do português com uma parede que era todo o mar. A fotografia mais bela que lhe tirei. Descobrir o Dorival como se descobre o Camões. Conhecer noutro lugar a cidade mais livre que conheci na vida. Uma selva de prédios humanos construídos numa cidade de árvores. A visão do missionário tornada realidade. A história mais bela que já ouvi, a deste país e do meu, que é a mesma e são o mesmo, porém com nomes diferentes, tudo tão bem disfarçado. O amor mais absoluto que alguma vez vivi. Naquele quarto à noite, de luzes apagadas iluminado pelas janelas abertas e pela cidade das tartarugas ninja lá fora, ou seria o Japão dos filmes do Mizoguchi? A constante imagem de uns candeeiros de papel, um japão que está para lá do óbvio, não sei explicar, não é só o que parece. De onde veio este Japão em mim? A chuva quente, como se não estivesse a chover e fosse o ar que com tanto calor tivesse começado suando, e se tivesse tornado água que cai, com toda a avalanche das coisas da selva. Perdidos naquele carro no mar alto como num barco. A simpatia dos heróis. Já ter encontrado um amigo em três continentes diferentes. A liberdade da ingenuidade de quando tudo corre bem para uma civilização inteira, e abrir as pernas é só um absoluto prazer. Aqueles sons quentes como a voz do Chico. Tantas brincadeiras em aeroportos. A despedida mais comovente da minha vida, para sempre, com todo o peso dessa palavra, a maior tragédia que já vivi. 


Outro melhor do ano foi ter aprendido a estar sozinho graças à ajuda da minha amiga. Quando ela me disse mais uma vez aquilo que já tinha dito antes e foi como se precisasse repetir aquelas palavras mágicas só mais uma vez, como num bruxedo, para eu as ouvir no coração. Uma alma mais madura e pura, que não chora por dentro nem por fora e não precisa do Cais do Sodré para ser feliz e por isso mesmo é que pode lá ir e ser feliz. Um Homem que nasce e a ela lho devo, ela que agora está num barco algures no mundo inteiro, impossível de achar, a verdadeira marinheira portuguesa, ela que o é tão mais do que aquilo que pensa, que é na verdade a maior de nós todos. A poesia do fazer e não do dizer, que ambos aprendemos este ano, também à conta dela.


Outro melhor do ano foram dois funerais. De um marido e de uma mulher que viveram casados uma vida e foram pais do meu querido pai. Fizeram-nos nascer a todos, e fizeram a nossa vida até hoje. A crueldade de não poderem viver um sem o outro, ou outras palavras para isso. Uma criança que finalmente vê aquele dia que sempre pensou como seria. A coisa mais triste do mundo, à segunda vez, tornar-se um hábito. Aquela senhora, que da idade deles, disse que não queria vê-los mortos porque preferia recordá-los para sempre em vida. O meu tio no cemitério a dizer à minha tia para nos apressarmos, porque já vinha aí o funeral seguinte e nós a saltarmos por entre as campas como cães na chuva, ou crianças numa brincadeira com fatores mais complexos. O meu pai e as mãos dadas com a minha mãe. O que só o casamento dá. Aquele senhor da Índia Portuguesa, que foi preciso o meu avô morto para o conhecer, que lá chegou aos dezoito anos no couraçado Índia, de faixa de luto pela morte do Óscar Carmona (um senhor do século XIX), e atravessou três rios e quem sabe todo o oceano em jangadas, que estava lá quando São Francisco Xavier regressou a Goa e que levou uma bofetada do Vasco Gonçalves (pai de quem é) como um pai dá a um filho, tudo isto enquanto reconstruía todos os monumentos portugueses da Índia. A mágoa de nunca saber todos os segredos que nunca me quiseram contar ou que nunca perguntei. Terem sido sempre tão bons para mim, os meus avós. E a calma e a serenidade que me dá ter dado à minha avó, sozinhos, a sua última refeição lúcida e nunca mais a ter visto viva. Eu querer dizer obrigado mas não querer, com ele, matá-la. O padre, quando nos ensinou, no funeral do meu avô, a o honrarmos sendo bons e honrados como ele foi sempre em vida.


Outro melhor do ano passou-se entre funerais, três meses concretizados dentro de um buraco no centro do país, onde vivi durante uma semana, e conheci algumas das pessoas mais maravilhosas que me foi permitido, que pude perceber que o eram pelas condições que o buraco nos oferecia para nos vivermos uns aos outros. Uma guerra, sem os tiros, só com as trincheiras, a tortura chinesa nas cabeças com goteiras de água gelada durante seis dias (ainda as sinto, agora, só de falar nisso), o barco a afundar, e a hilariante literalidade de como o fazer vir à tona. A grande capitã do navio, que não tinha medo de nada. Os engenhos da terra para extrair a água iguais aos da transfusão do vinho para as pipas. O homem que nos intervalos da guerra ia correr. A humildade de alguns. A boa vontade ao vivo (como se diz de assistir a um concerto). Os morcegos que afinal eram andorinhas, que a Maria Fumaça imitava tão bem coladas ao teto com aquela cara, e eu não conseguia parar de rir. O rapaz que só em três conversas no meio da humidade de um vale gelado confiou em mim para me emprestar o livro mais importante da vida dele, que ele soube imediatamente que contava a história da minha vida, tendo-me como protagonista. Voltar mais cedo e perder a chanfana e em troca ver a materialização do meu sonho de família numa terra da qual tinha ouvido falar toda a vida e que só este ano conheci. E que é linda. Assim como aquela família e a vida que levam. Um desejo intenso de imitação daquilo, um exemplo de felicidade viva e perfeita. Descobrir quem são as pessoas boas deste mundo e saber que têm um nome e uma profissão que os faz também ter alguma diversão no Verão apagando fogos. Ter passado a poder dizer que não vivi toda a vida em Lisboa. Agora tenho uma casa que também é minha, com fantasmas, família e tudo. Mãos de criança falecida nos vidros, quadros que caem, canos que projectam água para nós, luzes que comunicam em morse. Agora estão todos com os meus avós. E aquela moça, prima tão nova, que essa sim, vivíssima, me assombrava à noite.


Finalmente, outro melhor do ano foi o casamento de uma querida querida amiga, abençoado pela minha primeira ida a Fátima, que foi o casamento mais belo onde jamais estive, que julgo que só será ultrapassado, um dia, pelo meu (ah, como estou longe do tempo em que comecei a escrever aqui), no qual tive o previlégio de, entre centenas de convidados, ficar uma hora a sós com a noiva e, de madrugada, apertadinhos num vão de escada, ela vestida de noiva, ouvir uma vida resumida nas mais belas histórias de amor que já ouvi. No fim, ao serem coroadas pela sua filha, que, sussurrando os dois no escuro, adorámos, olhando para ela dormindo num berço mais repousante que há, descobrir que afinal, todos nos lembramos dos nossos berços, pois a sensação, ali, era como estarmos os três como eu sinto que fosse se estivéssemos dentro da barriga da minha amiga. Ela de branco. Ela e o marido a serem os últimos a sair da pista de dança, já quase ao nascer do Sol. E tantos amigos, tantos, acampados à volta da casa, como uma cidade de amigos. O cheiro a terra.


Para terminar, outro melhor do ano foi o jantar onde se reencontraram as pessoas que marcaram a infância umas das outras há vinte anos atrás, e sem as quais eu não seria eu. Aquele abraço. As caras de todos nós, ao descobrirmos que afinal ser adulto é isto. Não ter passado tempo nenhum.

3 comentários:

Anónimo disse...

Deve ser impressionante ser-se amado por ti.

Calor Humano disse...

Quem me dera que assim fosse. Obrigado.

Aurora disse...

Caramba, que ano tiveste! tens uma pequena gralha, na palavra chuver.