domingo, 16 de maio de 2010

Para sempre

Um momento que me marcou para sempre foi aquele dia no jardim.

Um grupo de actores fazia teatro de rua. Propunham ser mudos. Estavam sempre sérios e eram muito expressivos. Comunicavam batendo em malas de viagem vazias, cada um tinha a sua. Moviam-se em bando, como pássaros, para onde ia o primeiro ia também o segundo, vestidos com roupas minimalistas escuras. Interpelavam os transeuntes com um olhar esbugalhado e ensandecido, assustador, e ficavam parados fitando-nos, batendo nas malas, pedindo-nos para batermos também, esperando uma reacção.

A reacção era contorná-los. Parecia ter sido ganha a proposta estética. Desafiava o outro.

No meio das pessoas passou devagarinho uma velhinha, pequenina, corcunda, de bengala, já sem dentes e com um olhar muito antigo. Ela não percebeu a proposta. Quando eles não perceberam que ela era uma velhinha e ficaram a bater nas suas malas, ela ficou a olhá-los, sem perceber porque não a deixavam passar. Nos olhos deles viu-se imediatamente que não aguentavam o bluff de não serem seres humanos, mas não podiam parar a sua performance. Não sabiam o que fazer e continuaram a bater nas malas e a olhá-la. A senhora ficou a olhá-los com um olhar esgazeado e começou a gemer, como se chorasse, mas zangada. Ela começou a tocar-lhes, pequenina. Foi aí que se percebeu que ela era louca. Quando começou a passar-lhes as mãos pelo peito e pela cara eles não sabiam o que fazer e ficaram quietos. As personagens não estavam programadas para encontrar a vida.

Ela segurava-lhes nas mãos quando chegou a neta e a levou dali dizendo que era a brincar avó, eram actores, era a fingir.

1 comentário:

Mayra disse...

Que instante delicado. Apetece colocar num vidrinho e admirar, assim, como fez tão bem com as palavras.