sábado, 31 de dezembro de 2011
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
A felicidade das temperaturas
Este está a ser o melhor inverno da minha vida.
Sempre fui do calor.
Mas este inverno decidi aceitar o sofrimento do frio em vez de o tentar contrariar.
O que aconteceu logo ao primeiro dia foi que passei a saborear a sensação que antes preconceituosamente discriminava como desagradável. Preconceitos sensoriais.
É como com a comida. Há pessoas que dizem que não gostam de umas comidas. Porquê? O que é não gostar? Arde a língua? Não percebo. Eu gosto de todas as comidas. Claro, umas mais que doutras. Mas não gostar parece tão exagerado.
Devemos ter muita atenção às coisas que sentimos.
Às vezes pensamos que estamos a sentir algo desagradável mas é só porque alguém nos convenceu que era, e outra pessoa tinha convencido essa e afinal era tudo só um mito urbano porque não tinhamos tido tempo de perceber (porque ficámos com medo ou quisemos agradar àquela pessoa ou estávamos com pressa). Mas, se prestarmos atenção, descobrimos que as sensações são o que são.
É por isso que este ano estou a recusar todas as fontes de temperaturas artificiais. Não ligarei nem um aquecedor. Não irei nunca descontinuar a temperaturização do meu corpo pela natureza. Claro que ando bem agasalhado, mas aí é o meu calor que fica guardado nas minhas roupas, não é um calor de uma máquina. A temperatura é uma coisa tão íntima. Como é que as pessoas deixam que as máquinas se intrometam?
Até agora está a correr bem, porque pela primeira vez o meu corpo consegue habituar-se ao frio. E quem me diz que nessa habituação não há ainda outras coisas que se transformam em mim? É que tudo pode ter consequências e, afinal, o corpo foi feito para a terra e quando criamos situações artificiais podemos nem saber no que estamos a mexer. Se calhar os problemas todos do mundo resolviam-se se nos livrássemos dos aquecedores. Quem é que sabe?
É como andar à porrada. As pessoas dizem que é mau. Como é que sabem? Levar uns murros pode ser bom. Fazer bem. À pele por exemplo.
Por exemplo, se não houvesse aquecedores, as pessoas tinham frio e abraçavam-se mais. Quem sabe assim surgiam mais pretextos para o amor? É que se a nossa temperatura é nossa, se vem do nosso corpo, então não há coisa melhor que partilhar a nossa temperatura com outra pessoa e aquecer a pessoa de quem gostamos. Mas se ela nunca tem frio porque está sempre de aquecedor ligado, como podemos amá-la?
Estive aqui na terra todos estes anos e ainda nem sabia o que era o Inverno. A vida está mesmo sempre só a começar. Nem sequer faço ideia das coisas que vou aprender para o ano. Por isso, nada de precipitações, e bolinha baixa com as opiniões sobre as coisas da vida e isso tudo.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Mas porque é que temos de exigir reciprocidade nas relações?
É que é tão melhor poder dar amor sem limites.
Porque é que eu tenho de ser obrigado a só gostar de quem gosta de mim? Porque haveria de só poder agir com amizade para quem fez o mesmo comigo, se genuinamente gosto de muitas pessoas que não tenho a sorte de me distinguirem especialmente na forma como me tratam, mas para com quem tenho sentimentos bons?
Porque é que hei de ser obrigado a perder tempo a agir com maldade só porque uma pessoa foi má para mim, duplicando assim o mal na minha vida por acrescentar ao que vem de fora, um que vem de dentro?
E quando uma pessoa nos trata bem? Não devemos tratá-la bem por causa disso. Devemos tratá-la bem sempre.
A reciprocidade é uma troca, não uma dádiva. É um racionalismo que só nos faz sofrer proque nos obriga a ser maus para pagarmos com mal o mal dos outros. É assim que a razão leva à maldade.
É um capitalismo afectivo.
E é urgentemente, radicalmente, bondosamente preciso parar a invasão.
domingo, 6 de novembro de 2011
Tenho muita sorte
Tenho muita sorte por num dia muito feliz da minha vida - há uns anos atrás numa altura em que havia uma moça de quem eu gostava muito e que me fazia andar todos os dias cheio de sonhos e esperança - ter sem querer enfiado a minha mão por uma faca a dentro. O corte foi suficientemente fundo para a marca nunca sair e agora sempre que vejo a cicatriz lembro-me dessa rapariga e acho que nunca me hei de esquecer desse dia. Estava na RTP Memória a dar um programa sobre portugueses no Brasil nos anos oitenta, que tinham ido para lá nos anos sessenta, e depois deu um programa sobre os quiosques de Lisboa. Depois fui para a varanda da cozinha ler e apanhar sol ao mesmo tempo, e beber chá. Estava um sol tão bonito.
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
Crise de quê
Talvez com a diminuição da esperança média de vida aumente a esperança média na vida.
Viver sim, mas fazendo o quê?
Viver sim, mas fazendo o quê?
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
Preciso ser pai
A noite passada sonhei que me nascia outro irmão.
Lembro-me que sonhei que subia feliz o elevador do prédio de apartamentos onde vive a minha família sabendo que o iria conhecer, e pensei, rindo, como era incrível não ter reparado que a minha mãe tinha estado grávida.
Quando conheci o meu segundo irmão, peguei nele e disse aos meus pais que tomava conta dele essa noite, e fui dormir para o sofá da sala. Ele não queria dormir, queria brincar, e gatinhava precocemente no chão da sala. Mesmo com ele a querer brincar, consegui adormecer, no sonho, feliz, vigiando-o abrindo um olho de dez em dez minutos. Lembro-me que pensei que quando eu tiver quarenta e cinco anos ele terá vinte. Que ia ser tão bom sermos três irmãos daqui para a frente o resto da vida.
Depois acordei e ele não tinha nascido. E nunca nascerá. Foi como se tivesse morrido.
Consola-me apenas a ideia que quando eu tiver quarenta e cinco anos este sonho terá na mesma vinte anos.
sábado, 24 de setembro de 2011
Mulher da minha vida
Agora que sei como as pessoas se comportam perante a morte, ao tentar perceber quem será a mulher da minha vida, não consigo deixar de pensar que estou a escolher a pessoa que vai deitar para o lixo as minhas coisas quando eu morrer.
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
Hoje vi a mais bela das coisas
Num restaurante, uma mulher tão bela de felicidade como eu nunca vi, de vestido fresco de verão, dando de comer à boca do seu bebé de um ano.
Porque foi com ela que fiquei a saber o que é uma mulher maternal. Enquanto o bebé acabava de engolir, ela olha para o marido, pega com a outra mão no copo dele e dá-lhe de beber à boca, enquanto ele, babado, olha para o filho dos dois.
Nas outras mesas, cada um comia do seu prato. Tive então a nítida sensação que havia três tendências sexuais na sala. Mas não havia nem heteros nem homos. Havia as pessoas sem filhos, havia os homens com filhos e havia as mulheres com filhos. Como se uma pessoa só depois de ser pai passasse a ser homem, e só depois de ser mãe passasse a ser mulher.
Depois as luzes apagaram-se de repente e cantámos todos os parabéns a outro menino que estava nessa mesa. O pai envolvia-o todo com um braço à volta do corpo e uma mão em toda a barriga pequenina. Ele no escuro, olhava com os olhos amarelos pequeninos espantados a vela inesperada. Fazia quatro anos.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
domingo, 28 de agosto de 2011
Comunidade
As coisas que vivemos com os outros aproximam-nos deles.
As que vivemos sozinhos afastam-nos.
Sempre que faço uma coisa que gosto sozinho - ainda por cima são cada vez mais raras - sinto que a gastei mal.
Não apenas por ter perdido uma oportunidade de construir proximidade com alguém - na sua partilha, que me faria passar a ter algo em comum com a pessoa com quem a fizesse - mas sobretudo porque essa vivência, tida sozinho, me fez passar a ter mais uma coisa só minha, que só aconteceu a mim, e que os demais desconhecem, afastando-me ainda mais deles.
Foi este ano em Berlim, que ouvi, da boca da filha da amiga de infância da minha mãe, a frase em que sempre acreditei e que nunca tinha pensado "não interessa onde estejamos desde que estejamos bem acompanhados". Ela disse-a como se nos tivéssemos conhecido desde sempre. Eu nunca a tinha visto. A minha mãe e a dela viveram juntas a união soviética.
Foi este ano em Berlim, que ouvi, da boca da filha da amiga de infância da minha mãe, a frase em que sempre acreditei e que nunca tinha pensado "não interessa onde estejamos desde que estejamos bem acompanhados". Ela disse-a como se nos tivéssemos conhecido desde sempre. Eu nunca a tinha visto. A minha mãe e a dela viveram juntas a união soviética.
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Culpa
Todas as noites, ao deitar-me, penso na minha avó, e na culpa que sinto por não lhe ter telefonado nesse dia.
E no dia seguinte, volto a não lhe telefonar.
Todos os cheiros me fazem lembrar dela.
Um dia
Um dia já não vou ter a desculpa de que é porque sou novo.
Não fracassei, mas já estou no caminho.
É melhor começar já a pedir perdão.
Se começar só lá, não vou ter tempo para tantas culpas.
Gostava de não ter de passar por isto sozinho.
terça-feira, 9 de agosto de 2011
Seleção Sobrenatural
Com cada vez menos crianças a nascer, as pessoas do futuro saberão que foi mesmo um milagre terem nascido.
Agradecerão.
As relações entre pais e filhos das pessoas do futuro serão doces.
E aqueles que, de entre esses filhos, optarem por não ter os seus, saberão que estão a fazer uma maldade, porque já terão visto o futuro.
Serão é poucos.
As pessoas do futuro serão como aqueles dois mil seres humanos a que se estima que a humanidade tenha estado reduzida no final da era glaciar.
Foi mesmo à justa.
E vejam só o que os descendentes deles fizeram!
Na altura, foi uma seleção natural em que ficaram só os mais fortes.
Agora será uma seleção sobrenatural onde ficarão só os mais altruistas.
domingo, 24 de julho de 2011
Só há um tipo de amor
Hoje, durante três horas, fotografei uma modelo lindíssima. Tem vinte e dois anos. Depois filmei-a, a responder a algumas perguntas.
Três horas a olhar para a beleza. Não é como quando uma pessoa bonita passa por nós na rua, nem como quando conversamos com uma. Olhei para ela através da câmara como só olhamos uma mulher que é nossa. Três horas a poder olhar continuamente para uma beleza desconhecida sem ter de disfarçar, a sós com ela na cave escura do lugar onde trabalho. A única luz era a dos projetores. Imaginem a mais bela das moças. Uma esfinge. Fazia-me os poros tremer, morena, animal, tanta-pele, ágil, num silêncio nosso, de um olhar meu, todo atenção.
Era daquelas pessoas que nos fazem confundir a beleza com o amor, e das quais - mesmo eu acreditando que a beleza é uma das provas que Deus existe - me aprendi a afastar, por a atração por elas ser baseada apenas no que não vivi com elas, e não no que vivi.
Mas esta disse-me isto quando lhe perguntei o que é o amor:
Amor? Há vários tipos de amor... Amor de mãe, amor de irmão, amor de amigo, amor romântico... AH, espera, não. Não, só há um tipo de amor.
E eu, espantado, nunca tinha ouvido Só há um tipo de amor?
E ela, olhando para cima (para o amor possivelmente, pela primeira vez) Sim, claro que parvoíce, não há nada vários tipos de amor, é tudo o mesmo! É o amor da família (aqui arregalou os olhos).
Porque quando amamos alguém, queremos que essa pessoa faça parte da nossa família. Não é? Os nossos pais já os amamos, os nossos irmãos também, e os amigos, desejamos que eles façam parte da família, então pronto, só há um tipo de amor. Claro que entre os casais há a atração física, mas isso é a paixão, não é o amor ...
Se calhar vocês já sabiam isto. Mas eu nunca tinha sequer pensado ou ouvido esta ideia. Assim, tão simples.
(o que me fez pensar que ando ou a ler os livros errados ou a dar-me com pessoas demasiado feias)
Uma vida inteira armado em intelectual, e ao contrário do que eu pensava, a vítima da beleza era, evidentemente, não ela, mas eu.
Ela, porque a tem, não é por ela iludida, distingue-a com toda a clareza do amor. Possivelmente por a beleza, ela a ter toda, e ao amor, nenhum, para ela era muito evidente que só há um tipo de amor.
Tenho de me começar a dar com mais modelos.
sábado, 9 de julho de 2011
O ofício de construir uma alma
Tenho a sensação que o ofício de viver é um contínuo combate interior à nossa depressão (que vencerá sempre se nada for feito).
Essa continuidade é a nossa alma.
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Nova vida
Toda a minha vida tive medo do escuro.
Uma particularidade desse medo é que só vinha quando estava sozinho.
Há uns dias, estava debaixo da terra, era de madrugada e estava sozinho em pleno escuro, numa cave funda e sem luz nem janelas no lugar onde trabalho, quando me apercebi que não tinha medo.
E, admirado, apercebi-me que já não era a primeira vez. Foi quase já só uma lembrança eu antes tinha medo. Puz-me a pensar há quanto tempo não sinto medo do escuro.
É desde que acredito em Deus.
Isto é mesmo verdade.
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Atenção interior
Antigamente incomodavam-me as conversas ocas dos outros.
Eram como um vácuo que sugava o meu espaço mental.
Hoje já não.
É como se, sem dar conta, tivesse descoberto o meu verdadeiro espaço interior (e afinal antes estava só à porta de mim) e esse vácuo deixado de ser capaz de me quebrar a concentração, como se nunca, até hoje, eu tivesse verdadeiramente estado concentrado.
E assim consigo aperciá-las. São como o som de um ribeiro que corre lá para o cantinho da minha alma. Como se as vozes das pessoas à minha volta fossem o lindo cantar de um passarinho. Afinal, racionalmente, ele também é oco.
É como se o meu erro tivesse sido atribuir demasiada importância às palavras que eram ditas.
Afinal o oco era eu, em quem entrava tudo.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
Um ser limitado
Esta noite, entre tantas pessoas formidáveis, únicas, corajosas, bonitas, vivas, dei por mim, enquanto saltava e gritava no meio do moche, a sentir a grande alegria de ser uma pessoa.
O êxtase da unidade da minha limitação.
O êxtase da unidade da minha limitação.
segunda-feira, 4 de julho de 2011
Não é possível seguir duas coisas ao mesmo tempo
Tudo são portas cuja abertura consiste no fechamento de outras.
Cada coisa vai num sentido diferente.
Cada coisa vai num sentido diferente.
terça-feira, 21 de junho de 2011
Verdadeiro o amor que só pode ser aquele
Quanto mais velhos crescemos, menos pessoas há com quem nos possamos casar.
Somos cada vez mais irreversíveis. Já não há, nos outros nem em nós, o futuro do sonho do que eles, ou nós, poderemos ser. Já somos tudo o que poderemos ser. O que iríamos descobrir juntos está cada vez mais a descoberto, na solidão.
Mas por essa razão, se encontrada a rara, única, pessoa, que poderíamos amar, mais fulminante é esse amor.
A complexidade que adquirimos através do tempo apurou a especificidade do que somos, e o que antes era uma incógnita, materializado, faz com que a excitação do incerto dê lugar à certeza da excitação.
A eroticidade do definido. A sedução da forma concreta, sem dúvidas. O desejo louco do que é irremediável. O deslumbre, a tentação em nós da tragédia do verdadeiro amor: aquele que só pode ser assim.
Por isso, quanto mais novos, mais amores, mas mais leves, quanto mais velhos, menos, mas mais fortes.
Pelo menos, quero acreditar que sim.
quarta-feira, 15 de junho de 2011
Ao verificar o tempo que levamos a aprender cada coisa
Não pedir mais tempo.
Agradecer a Deus a sorte de Ele nos dar uma esperança de vida que chega para O compreendermos.
Agradecer a Deus a sorte de Ele nos dar uma esperança de vida que chega para O compreendermos.
sábado, 4 de junho de 2011
Estranha entranha
De tudo o que se gosta, se aprendeu a gostar.
Não é só o vinho. Nem a coca-cola com a frase do Fernando Pessoa. É tudo.
Tudo o que gostamos nos foi ensinado a que gostássemos. Assim como não há nada natural, porque tudo é natural.
Esta compreensão permite alcançar o erro da nossa sociedade baseada no que gostamos.
Pensem nisso.
sábado, 28 de maio de 2011
O amor só pode ser para a vida toda
Porque uma vida não chega para tudo o que eu e ela temos para partilhar.
(A tristeza de saber que inevitavelmente já há coisas que ficarão de fora...)
Porque quanto mais se cava no mesmo lugar, mais profundos são os lugares a que se chega.
(Monotonia trágica a de estar sempre a mudar de lugar mas sempre à superfície... a partilhar sempre a mesma coisa)
sexta-feira, 27 de maio de 2011
Quando as coisas contam
Quando se ama todos os dias são diferentes.
Quando não se ama todos os dias parecem diferentes.
Quando não se ama todos os dias parecem diferentes.
domingo, 15 de maio de 2011
Seja sobre o que for
Uma pessoa não compreender determinada coisa pode significar que ela sabe mais sobre ela que outra que a compreende.
Pois a que compreende pode estar a basear a sua compreensão num equívoco.
E a que não compreende simplesmente vê a falta de sentido da explicação apresentada.
quarta-feira, 11 de maio de 2011
quarta-feira, 30 de março de 2011
Comunidade
A partir de certa altura já nos morreram tantas pessoas que começamos a ter de parar para nos lembrarmos quem são os que estão vivos e quem são os que já morreram.
Pois passamos mais tempo com alguns que não estão vivos.
E a presença deles conosco no escuro é mais natural.
E a sua voz mais verdadeira.
Como se houvesse uma coisa que não vemos mas que sentimos.
Uma coisa que não faz sentido mas que está certa.
sexta-feira, 18 de março de 2011
sábado, 12 de março de 2011
Portugal pátria do futuro
Falando de línguas que nasceram em Portugal.
Há mais portugueses a falar crioulo do que mirandês.
Há mais portugueses a falar crioulo do que mirandês.
quarta-feira, 2 de março de 2011
terça-feira, 1 de março de 2011
Não há desculpas
Foi num dia de inverno que parecia de verão, pois tínhamos feito imensas coisas e agora estávamos a voltar para casa. Eu olhava para a auto-estrada e o pôr do sol parecia agora, porque os dias eram curtos e as lâmpadas da auto-estrada e a conversa animada tínham-nos distraído de que já era bem de noite. Ainda nem tínhamos jantado. Era aquela sensação conhecida daqueles que já vieram do Alentejo à noite para Lisboa. Tínhamos acordado de madrugada, já tínhamos estado em três cidades, feito amigos novos, rido, gritado, corrido, lutado pela transformação democrática de Portugal, entre outras coisas.
Foi quando, ao volante, aquele homem calmo, sereno, sorridente, moreno e discreto, que organiza missões humanitárias em centenas de países, me disse que somos nós que escolhemos a família em que nascemos.
Dentro de mim o carro travou dos cento e vinte quilómetros por hora para os menos cento e vinte quilómetros por hora, demos três cambalhotas no ar sobre a auto-estrada e aterrámos num mundo novo, embora, cá fora, tudo continuasse igual, talvez um pouco mais escuro mas mais brilhante (como as paredes dos templos japoneses no escuro). O silêncio no carro era apenas cortado pelo sorriso do condutor.
Ainda hoje, agora, aqui, vivo aquele instante e a cada dia que passa sei menos como lhe agradecer.
Dentro de mim o carro travou dos cento e vinte quilómetros por hora para os menos cento e vinte quilómetros por hora, demos três cambalhotas no ar sobre a auto-estrada e aterrámos num mundo novo, embora, cá fora, tudo continuasse igual, talvez um pouco mais escuro mas mais brilhante (como as paredes dos templos japoneses no escuro). O silêncio no carro era apenas cortado pelo sorriso do condutor.
Ainda hoje, agora, aqui, vivo aquele instante e a cada dia que passa sei menos como lhe agradecer.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
Desaprender o mal
Recordo o espanto que senti naquele dia, ao perceber que já não sabia fazer tal tarefa mal feita.
Era uma tarefa simples, mas fácil de fazer mal, pois eram muitos os atalhos para a minha perguiça.
Mas de tanto me obrigar a repetir essa tarefa bem feita, certo dia, ao ter o instinto de procurar os atalhos, não os encontrei.
Foi assim que descobri que já só sei fazê-la bem.
A partir desse momento, passou a não custar nada fazê-la bem, porque passou a ser a única maneira de a fazer que sei.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Outro lugar
Nós habitamos aqui.
Estes são os nossos cheiros.
As nossas mãos produzem estes sons.
Vais gostar de nós como prolongamento deste lugar confortável.
Mas não fazes parte daqui pois as tuas mãos não fazem os sons.
Não te queremos mal, mas contigo aqui deixamos de ser nós e perdemos a capacidade do aqui.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
Melhores do Ano
Comovem-me as listas de melhores do ano.
Comovem-me os que insistem em as compilar.
Comovem-me as pessoas que as publicam do seu computador para o mundo, pondo muito pensamento nisso, sabendo que o mundo está interessado e aguarda ansiosamente pelas escolhas deles, porque só eles sabem algo que todos precisamos saber, e o como isso faz deles importantes.
Comove-me a forma, empenho, dedicação e concentração que põem nisso, de quem sabe que no fim, são aquelas escolhas que os definirão no grupo de amigos, junto das pessoas com quem querem estar, aos olhos dos outos de quem é preciso ter o respeito para, por sua vez, se ser respeitado por aquela pessoa que queremos que goste de nós.
Comovem-me os que insistem em as compilar.
Comovem-me as pessoas que as publicam do seu computador para o mundo, pondo muito pensamento nisso, sabendo que o mundo está interessado e aguarda ansiosamente pelas escolhas deles, porque só eles sabem algo que todos precisamos saber, e o como isso faz deles importantes.
Comove-me a forma, empenho, dedicação e concentração que põem nisso, de quem sabe que no fim, são aquelas escolhas que os definirão no grupo de amigos, junto das pessoas com quem querem estar, aos olhos dos outos de quem é preciso ter o respeito para, por sua vez, se ser respeitado por aquela pessoa que queremos que goste de nós.
Mas o que me impressiona realmente é como essas listas são todas só de discos e filmes, e pior, afinal, todos os mesmos em todas as listas. Todos escolhidos por um festival organizado por franceses numa vila agradável à beira do Mediterrâneo, e por um site chamado Pitchfork, aos quais, afinal, o ato de fazer a lista é apenas um juramento de fidelidade.
E no entanto, também eu tenho os meus melhores do ano.
E no entanto, também eu tenho os meus melhores do ano.
A minha lista de melhores do ano começa em Janeiro, quando passei o mês mais feliz da minha vida, com ela.
De mãos dadas conheci um Império. No Norte, uma pontinha do Sertão, terra mítica, e fiz talvez a coisa mais emocionante da minha vida: cavalgar pelas dunas de tronco nu, completamente livre num cavalo, só eu, ele, ela, o cavalo dela e a areia de um país dentro de um país feito de deserto à beira mar de quilómetros infinitos. E começou a chover e o cavalo falava comigo. Eu corria atrás dela, que é selvagem como os bichos mais bons. Esses, que ficavam parados sozinhos no meio da paisagem, numa terra onde as auto-estradas para os jipes andarem são a areia molhada pelo oceano ao nascer do Sol vermelho-sangue, ondulando paralelos à rebentação, desenhando curvas de trilhos como os bichos, que as crianças brincavam de matar com pedras. A cidade de ruas de areia que passou a ruas de mar. Os sapos nos nossos pés. Comer assim juntos e valer a pena comer e tudo o resto. A alegria em todos os poros que nos dá uma alma gémea. Nunca na vida ter começado um ano com sequer um décimo de tanta esperança. E depois viver a História ao vivo, e ver como na Europa estamos tão mortos, na cidade da Bahía de São Salvador, onde os escravos livres me disseram que tomaram a cidade de nós, e que agora tentam viver de nos mostrarem aquilo que já foi nosso. Sentir a minha casa mais perto do que nunca. O coração a bater como se fosse a primeira vez que visse ao vivo a minha Mãe que vira durante vinte anos em fotografias e julgava morta, ou pior, nunca nascida. Fazer a casa numa ruína. A voz da minha mulher no ar. A paixão dela. O túmulo do homem que plantou coqueiros em metade da superfície da terra. Os únicos azulejos que mostram a cidade onde nasci que, quando nasci, já não existia. A intimidade com os espíritos dos deuses vivos nos corpos de uma família que era toda uma cidade, numa casa humilde de luzinhas acesas no morro Vasco da Gama. A cidade que Lisboa quis ser, a gémea irmã, como até agora só tinha conhecido essa cidade com nome de Rio. João a cantar na casa do português com uma parede que era todo o mar. A fotografia mais bela que lhe tirei. Descobrir o Dorival como se descobre o Camões. Conhecer noutro lugar a cidade mais livre que conheci na vida. Uma selva de prédios humanos construídos numa cidade de árvores. A visão do missionário tornada realidade. A história mais bela que já ouvi, a deste país e do meu, que é a mesma e são o mesmo, porém com nomes diferentes, tudo tão bem disfarçado. O amor mais absoluto que alguma vez vivi. Naquele quarto à noite, de luzes apagadas iluminado pelas janelas abertas e pela cidade das tartarugas ninja lá fora, ou seria o Japão dos filmes do Mizoguchi? A constante imagem de uns candeeiros de papel, um japão que está para lá do óbvio, não sei explicar, não é só o que parece. De onde veio este Japão em mim? A chuva quente, como se não estivesse a chover e fosse o ar que com tanto calor tivesse começado suando, e se tivesse tornado água que cai, com toda a avalanche das coisas da selva. Perdidos naquele carro no mar alto como num barco. A simpatia dos heróis. Já ter encontrado um amigo em três continentes diferentes. A liberdade da ingenuidade de quando tudo corre bem para uma civilização inteira, e abrir as pernas é só um absoluto prazer. Aqueles sons quentes como a voz do Chico. Tantas brincadeiras em aeroportos. A despedida mais comovente da minha vida, para sempre, com todo o peso dessa palavra, a maior tragédia que já vivi.
Outro melhor do ano foi ter aprendido a estar sozinho graças à ajuda da minha amiga. Quando ela me disse mais uma vez aquilo que já tinha dito antes e foi como se precisasse repetir aquelas palavras mágicas só mais uma vez, como num bruxedo, para eu as ouvir no coração. Uma alma mais madura e pura, que não chora por dentro nem por fora e não precisa do Cais do Sodré para ser feliz e por isso mesmo é que pode lá ir e ser feliz. Um Homem que nasce e a ela lho devo, ela que agora está num barco algures no mundo inteiro, impossível de achar, a verdadeira marinheira portuguesa, ela que o é tão mais do que aquilo que pensa, que é na verdade a maior de nós todos. A poesia do fazer e não do dizer, que ambos aprendemos este ano, também à conta dela.
Outro melhor do ano foram dois funerais. De um marido e de uma mulher que viveram casados uma vida e foram pais do meu querido pai. Fizeram-nos nascer a todos, e fizeram a nossa vida até hoje. A crueldade de não poderem viver um sem o outro, ou outras palavras para isso. Uma criança que finalmente vê aquele dia que sempre pensou como seria. A coisa mais triste do mundo, à segunda vez, tornar-se um hábito. Aquela senhora, que da idade deles, disse que não queria vê-los mortos porque preferia recordá-los para sempre em vida. O meu tio no cemitério a dizer à minha tia para nos apressarmos, porque já vinha aí o funeral seguinte e nós a saltarmos por entre as campas como cães na chuva, ou crianças numa brincadeira com fatores mais complexos. O meu pai e as mãos dadas com a minha mãe. O que só o casamento dá. Aquele senhor da Índia Portuguesa, que foi preciso o meu avô morto para o conhecer, que lá chegou aos dezoito anos no couraçado Índia, de faixa de luto pela morte do Óscar Carmona (um senhor do século XIX), e atravessou três rios e quem sabe todo o oceano em jangadas, que estava lá quando São Francisco Xavier regressou a Goa e que levou uma bofetada do Vasco Gonçalves (pai de quem é) como um pai dá a um filho, tudo isto enquanto reconstruía todos os monumentos portugueses da Índia. A mágoa de nunca saber todos os segredos que nunca me quiseram contar ou que nunca perguntei. Terem sido sempre tão bons para mim, os meus avós. E a calma e a serenidade que me dá ter dado à minha avó, sozinhos, a sua última refeição lúcida e nunca mais a ter visto viva. Eu querer dizer obrigado mas não querer, com ele, matá-la. O padre, quando nos ensinou, no funeral do meu avô, a o honrarmos sendo bons e honrados como ele foi sempre em vida.
Outro melhor do ano passou-se entre funerais, três meses concretizados dentro de um buraco no centro do país, onde vivi durante uma semana, e conheci algumas das pessoas mais maravilhosas que me foi permitido, que pude perceber que o eram pelas condições que o buraco nos oferecia para nos vivermos uns aos outros. Uma guerra, sem os tiros, só com as trincheiras, a tortura chinesa nas cabeças com goteiras de água gelada durante seis dias (ainda as sinto, agora, só de falar nisso), o barco a afundar, e a hilariante literalidade de como o fazer vir à tona. A grande capitã do navio, que não tinha medo de nada. Os engenhos da terra para extrair a água iguais aos da transfusão do vinho para as pipas. O homem que nos intervalos da guerra ia correr. A humildade de alguns. A boa vontade ao vivo (como se diz de assistir a um concerto). Os morcegos que afinal eram andorinhas, que a Maria Fumaça imitava tão bem coladas ao teto com aquela cara, e eu não conseguia parar de rir. O rapaz que só em três conversas no meio da humidade de um vale gelado confiou em mim para me emprestar o livro mais importante da vida dele, que ele soube imediatamente que contava a história da minha vida, tendo-me como protagonista. Voltar mais cedo e perder a chanfana e em troca ver a materialização do meu sonho de família numa terra da qual tinha ouvido falar toda a vida e que só este ano conheci. E que é linda. Assim como aquela família e a vida que levam. Um desejo intenso de imitação daquilo, um exemplo de felicidade viva e perfeita. Descobrir quem são as pessoas boas deste mundo e saber que têm um nome e uma profissão que os faz também ter alguma diversão no Verão apagando fogos. Ter passado a poder dizer que não vivi toda a vida em Lisboa. Agora tenho uma casa que também é minha, com fantasmas, família e tudo. Mãos de criança falecida nos vidros, quadros que caem, canos que projectam água para nós, luzes que comunicam em morse. Agora estão todos com os meus avós. E aquela moça, prima tão nova, que essa sim, vivíssima, me assombrava à noite.
Finalmente, outro melhor do ano foi o casamento de uma querida querida amiga, abençoado pela minha primeira ida a Fátima, que foi o casamento mais belo onde jamais estive, que julgo que só será ultrapassado, um dia, pelo meu (ah, como estou longe do tempo em que comecei a escrever aqui), no qual tive o previlégio de, entre centenas de convidados, ficar uma hora a sós com a noiva e, de madrugada, apertadinhos num vão de escada, ela vestida de noiva, ouvir uma vida resumida nas mais belas histórias de amor que já ouvi. No fim, ao serem coroadas pela sua filha, que, sussurrando os dois no escuro, adorámos, olhando para ela dormindo num berço mais repousante que há, descobrir que afinal, todos nos lembramos dos nossos berços, pois a sensação, ali, era como estarmos os três como eu sinto que fosse se estivéssemos dentro da barriga da minha amiga. Ela de branco. Ela e o marido a serem os últimos a sair da pista de dança, já quase ao nascer do Sol. E tantos amigos, tantos, acampados à volta da casa, como uma cidade de amigos. O cheiro a terra.
Para terminar, outro melhor do ano foi o jantar onde se reencontraram as pessoas que marcaram a infância umas das outras há vinte anos atrás, e sem as quais eu não seria eu. Aquele abraço. As caras de todos nós, ao descobrirmos que afinal ser adulto é isto. Não ter passado tempo nenhum.
Finalmente, outro melhor do ano foi o casamento de uma querida querida amiga, abençoado pela minha primeira ida a Fátima, que foi o casamento mais belo onde jamais estive, que julgo que só será ultrapassado, um dia, pelo meu (ah, como estou longe do tempo em que comecei a escrever aqui), no qual tive o previlégio de, entre centenas de convidados, ficar uma hora a sós com a noiva e, de madrugada, apertadinhos num vão de escada, ela vestida de noiva, ouvir uma vida resumida nas mais belas histórias de amor que já ouvi. No fim, ao serem coroadas pela sua filha, que, sussurrando os dois no escuro, adorámos, olhando para ela dormindo num berço mais repousante que há, descobrir que afinal, todos nos lembramos dos nossos berços, pois a sensação, ali, era como estarmos os três como eu sinto que fosse se estivéssemos dentro da barriga da minha amiga. Ela de branco. Ela e o marido a serem os últimos a sair da pista de dança, já quase ao nascer do Sol. E tantos amigos, tantos, acampados à volta da casa, como uma cidade de amigos. O cheiro a terra.
Para terminar, outro melhor do ano foi o jantar onde se reencontraram as pessoas que marcaram a infância umas das outras há vinte anos atrás, e sem as quais eu não seria eu. Aquele abraço. As caras de todos nós, ao descobrirmos que afinal ser adulto é isto. Não ter passado tempo nenhum.
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Ano
Que no início do ano de Dois Mil e Onze d.C., no lugar de pensar em tudo o que quero dele, ou no lugar de pensar em tudo o que de mau me trouxe Dois Mil e Dez, eu seja capaz de pensar nas coisas boas que o ano que agora terminou me deu e agradecer por elas, para merecer que o ano que agora começa me traga mais coisas boas e não menos.
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