Tive uma ex-namorada. Devia dizer que a tive ou que a tenho? Será que as ex-namoradas também se têm, no presente, como resultado do que já foi? Eu sinto que sim, pelo menos. Tive-a de um maneira que não posso voltar a não a ter. Foi minha - e eu dela - de uma forma que faz que ela esteja para sempre comigo, mesmo que eu não queira (e não queria mesmo, gostava de ser capaz de destilar todo o meu sistema, com uma daquelas máquinas que há para purificar o sangue só que para a alma. Curiosamente, a Vida parece ser uma máquina dessas). Houve uma ex-namorada. Não, houve também não está bem.
Não posso julgar o que passou com os tempos verbais de hoje. Têm de ser os tempos verbais justos, do tempo dela. Sem a ter tido, não seria hoje quem sou, não teria aprendido com a experiencia de a ter, as coisas que eu antes dela não tinha e que tenho já sem a ter. Ela pode ter feito mais estragos que coisas boas, mas foi assim como um desbastar do calhau antes de começar a escultura, e alguém tem de fazer esse trabalho. Foi ela. Prestemos-lhe essa honra. Aprendi muito com ela. Tenho uma ex-namorada.
Parece que já não namoramos há muito tempo. De facto já passou algum tempo. Mas ela ainda tem coisas minhas na casa dela. Com que coragem é que eu lhas posso pedir (ou de que serve pedir) se eu sei que ela as tem porque quer ficar com um bocado de mim para sempre?
Eu sei que ela nunca me vai poder devolver aquelas lágrimas que me tirou, porque também não as tem. Lágrimas são sempre a fundo perdido.
Mas será que eu sou mesmo fútil ao ponto de ser capaz de lhe pedir que me devolva os meus livros, discos e filmes? São só coisas, mas sinto que se lhas tirar é como se lhe tirasse uma costela. Ela quer tê-las como se fossem um relicário de mim, eu sei. Só que eu não quero os meus livros de volta para apagar o passado. Quero-os só porque são meus, e o passado está dentro da gente, os livros são para ser lidos e aposto que ela não os lê. Mas será que são realmente meus? Talvez sejam algo que perdi quando, ao pertencemos um ao outro, na mistura de um com o outro e na separação e reconstrução de novo dos dois sozinhos, em tigelas separadas depois da receita estar pronta. Será que os meus livros são como aqueles tesouros que se perdem nos naufrágios?
Em todo o caso, ganhei e perdi muito mais com essa relação que DVDs. Perdi a minha ingenuidade (levou uns socos valentes) e a minha inocência não ficou intacta (está hoje suspensa num arame de trapezista que lhe dá um aspeto muito mais poético). Em compensação, ganhei um armamento de Rambo para resistir às agressões emocionais. Hoje mato víboras com passos de dança e afasto demónios com expressões solenes no Bairro Alto.
É por isso que me parece de uma grande futilidade estar a falar de livros, discos com música e com filmes a esta hora. São o menos importante de tudo isto. E em todo o caso não é tão fútil como se falasse no dinheiro que gastei com ela. Porque o dinheiro não existe, é muito feio misturar dinheiro e amor nas mesmas frases. São dois assuntos que não se podem misturar. Um desrói o outro.
Estes objetos sagrados não são como dinheiro. São pedaços de mim que ela tem em seu poder e que existem. Têm uma história.
Eu nunca lhos dei. Mas dei-me a mim e se já foi muito feio pedir-me de volta, porque quem dá não tira. Não posso voltar a fazê-lo. Em todo o caso, há mais pedaços de mim aí espalhados pelo mundo (alguns bem espalhados, aliás, alguns que quando os dei foi para nunca os ter de volta e assim é muito bonito, assim não há melhor coisa na vida). Não quero recolher tudo o que é meu e anda aí no mundo. É bom espalharmo-nos. Se pudesse, deixava um livro a cada pessoa que estimo a cada encontro. Adoro dar prendas. É sempre bom aprendermos a libertarmo-nos de nós próprios.
Não posso julgar o que passou com os tempos verbais de hoje. Têm de ser os tempos verbais justos, do tempo dela. Sem a ter tido, não seria hoje quem sou, não teria aprendido com a experiencia de a ter, as coisas que eu antes dela não tinha e que tenho já sem a ter. Ela pode ter feito mais estragos que coisas boas, mas foi assim como um desbastar do calhau antes de começar a escultura, e alguém tem de fazer esse trabalho. Foi ela. Prestemos-lhe essa honra. Aprendi muito com ela. Tenho uma ex-namorada.
Parece que já não namoramos há muito tempo. De facto já passou algum tempo. Mas ela ainda tem coisas minhas na casa dela. Com que coragem é que eu lhas posso pedir (ou de que serve pedir) se eu sei que ela as tem porque quer ficar com um bocado de mim para sempre?
Eu sei que ela nunca me vai poder devolver aquelas lágrimas que me tirou, porque também não as tem. Lágrimas são sempre a fundo perdido.
Mas será que eu sou mesmo fútil ao ponto de ser capaz de lhe pedir que me devolva os meus livros, discos e filmes? São só coisas, mas sinto que se lhas tirar é como se lhe tirasse uma costela. Ela quer tê-las como se fossem um relicário de mim, eu sei. Só que eu não quero os meus livros de volta para apagar o passado. Quero-os só porque são meus, e o passado está dentro da gente, os livros são para ser lidos e aposto que ela não os lê. Mas será que são realmente meus? Talvez sejam algo que perdi quando, ao pertencemos um ao outro, na mistura de um com o outro e na separação e reconstrução de novo dos dois sozinhos, em tigelas separadas depois da receita estar pronta. Será que os meus livros são como aqueles tesouros que se perdem nos naufrágios?
Em todo o caso, ganhei e perdi muito mais com essa relação que DVDs. Perdi a minha ingenuidade (levou uns socos valentes) e a minha inocência não ficou intacta (está hoje suspensa num arame de trapezista que lhe dá um aspeto muito mais poético). Em compensação, ganhei um armamento de Rambo para resistir às agressões emocionais. Hoje mato víboras com passos de dança e afasto demónios com expressões solenes no Bairro Alto.
É por isso que me parece de uma grande futilidade estar a falar de livros, discos com música e com filmes a esta hora. São o menos importante de tudo isto. E em todo o caso não é tão fútil como se falasse no dinheiro que gastei com ela. Porque o dinheiro não existe, é muito feio misturar dinheiro e amor nas mesmas frases. São dois assuntos que não se podem misturar. Um desrói o outro.
Estes objetos sagrados não são como dinheiro. São pedaços de mim que ela tem em seu poder e que existem. Têm uma história.
Eu nunca lhos dei. Mas dei-me a mim e se já foi muito feio pedir-me de volta, porque quem dá não tira. Não posso voltar a fazê-lo. Em todo o caso, há mais pedaços de mim aí espalhados pelo mundo (alguns bem espalhados, aliás, alguns que quando os dei foi para nunca os ter de volta e assim é muito bonito, assim não há melhor coisa na vida). Não quero recolher tudo o que é meu e anda aí no mundo. É bom espalharmo-nos. Se pudesse, deixava um livro a cada pessoa que estimo a cada encontro. Adoro dar prendas. É sempre bom aprendermos a libertarmo-nos de nós próprios.