quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Olhar as estrelas

Fala-se em olhar as estrelas. Mas poucos realmente olham as estrelas.
Quem olha as estrelas? A maioria sabe que elas lá estão. Não precisa de olhar. Essas são as pessoas para quem saber que uma coisa existe é saber tudo.
É como olhar o fogo. Uma vez conheci uma rapariga que tinha o milagre do fogo nos dedos.
Pegava numa pinha e num tronco duro de madeira e punha-os em cima um do outro e havia uma lareira. Eu e ela olhávamos o fogo. Viamos o fogo queimar, víamos as texturas do fogo, percebíamos que havia um lugar que era o fogo. E havia a madeira. E o fogo e a madeira juntos faziam a madeira desaparecer. O que fica no lugar da madeira? perguntava ela como se fosse criminosamente dona de um milagre.
Quando as pessoas que olham as estrelas olham para elas, vêem como que um pequeno carnaval, uma pequena festa de aldeira com fogo de artifício infinito sobre o vasto negro eterno, a acontecer a milhares de milhões de quilómetros lá em cima.
Já ali em cima de nós, a milhares de milhões de quilómetros. Quando eu olho as estrelas sinto a noite mais quente, e vejo com os meus próprios olhos outras galáxias. Poucas pessoas perdem tempo a olhar as outras galáxias. Essas são as pessoas realmente santas, para quem saber que elas existem basta. As pessoas com o milagre do olhar, olham.
Para elas, olhar é como pensar. Olhar é ser.
Essas pessoas quando olham para uma toalha de praia não vêem um rectângulo, vêem milhões de pontinhas de tecido suave e colorido juntas umas às outras, em muito complexas estruturas, que não é por isso que deixam de ser simples. Essas pessoas vêem numa toalha de praia toda a explicação das estruturas do mundo e percebem como complexidade e simplicidade podem ser sinónimos. Não chamam a isto filosofia.
Às pessoas que olham as estrelas, não é preciso deitar-se na praia para olhá-las, embora seja agradável. Basta-lhes uma janela, numa casa. Basta-lhes o céu.
Estas são pessoas que, como o Teddy, sabem que um braço não existe. Sabem que um braço é só um nome. Sabem que o braço está ligado ao ombro e o ombro ao peito, mas que são tudo uma só coisa. Onde acaba um braço?
Estas pessoas quando vêem madeira não vêem uma superfície, vêem paisagens. São pessoas para quem o tamanho não faz parte das coisas.
São pessoas que vêem os intervalos entre as coisas, e sabem que o nada não existe, só o tudo.
Normalmente são pessoas que dançam bem.
Sabem que a dança reside espaço entre os passos, e que os passos são só uma posição transitória para o corpo se poder mexer de uma posição para outra, que o completa a si mesmo.
Sempre que olho as estrelas lembro-me daquela noite de Verão, na Costa da Caparica quando tinha oito anos e anunciaram os extra-terrestres na televisão. Desde aí que sei instintivamente que o céu está vivo.

4 comentários:

Anónimo disse...

"We are all in the gutter but some of us look at the stars", já dizia o Oscar Wilde. E agora é na tua terra que vejo as primeiras estrelas da minha noite.
Beijinhos, Pedro.

Mayra disse...

Nossa que texto lindo Pedro! Realmente inspirado e escrito por alguém que tem essas estrelas nos olhos e esse crepitar do fogo no coração!

Foi um alento chegar tarde em casa e ler esta poesia em prosa. Vou dormir melhor! Mas antes, vou abrir a janela e realmente olhar para o céu.

Um beijo

Calor Humano disse...

Joana, e que tal a minha terra? Não é fantástico o céu do subúrbio? Já tiveste a sorte de um pôr do sol? O céu vermelho refletido nos vidros dos prédios a refletir nos vidros dos outros prédios. A estação de comboio em que sais é muito especial para mim, é uma pena que para a conheceres tenhas de testemunhar a sua morte... era a estação mais bonita de toda a linha de sintra...É verdade, o Oscar Wilde olhava as estrelas :) não te conheço bem, mas imagino que tu também. Aposto que os teus Moglis te têm ajudado a olhar o céu de outra maneira. Beijos joana.


Maaaaa, obrigado, para mim é que é um alento chegar da chuva de outono e encontrar-te aqui! Que uma coisa que eu faça sirva para tu dormires melhor é o mais alto objetivo a que posso aspirar. Tu és das que olha as estrelas sempre. A poesia está em quem lê. Não fiz nada mais poético do que fizeste naquela noite em que da janela tocaste a mesma chuva que eu. Um beijo no teu dedo indicador.

Anónimo disse...

Estou apaixonada pelo céu do subúrbio. E pelos meus Moglis que me danam o juízo. *