sábado, 11 de outubro de 2008

Os Ricos de Espírito

Ia a conduzir nas ruas da cidade, no meu carro preto. O teto estava aberto e deixava entrar a brisa da metrópole. O meu carro é baixo e é fantástico conduzi-lo. Parece que andamos colados ao chão, seja na auto-estrada seja na cidade. Desta vez estava na cidade. O rádio estava ligado. A estação era a Radar.

Então lá vem o tempo de antena do senhor Zé Pedro, o famoso guitarrista solo e ex-heroinómano dos Xutos & Pontapés, isto é, o Keith Richards português. Na edição de hoje do seu programa Zé Pedro Rock & Roll fez um bonito discurso. Defendeu as bandas portuguesas de música popular rock. Disse como era importante prestarmos atenção à nossa música, como ela era importante e tinha um lugar precioso a nossa cultura, como não devíamos sempre compará-la com a estrangeira mas julgá-la pelo que vale. E depois, apresentou a sua proposta do dia, em defesa da música portuguesa, como ele bem a defende. Apresentou uns tais que dão pelo nome de X-Wife.

Em primeiro lugar, já ouvi X-Wife no programa do Zé Pedro praí umas quinze vezes. Em segundo, os X-Wife não fazem música portuguesa. Os X-Wife são portugueses. Mas a música que fazem é anglo-saxónica. Promover os X-Wife não é promover a música portuguesa, é promover que os portugueses não façam música portuguesa e façam ainda mais música anglo-saxónica. Promover os X-Wife é promover a destruição da música portuguesa.

Como é que se pode dizer que é portuguesa uma música da qual eu, como português, não consigo perceber uma só palavra da letra porque, além de ser em inglês e o sotaque dele ser impossível, ele cantar de forma a eu não perceber nada?

Os X-Wife são uma boa banda. Só cometem um gravíssimo erro artístico. Cantam fora da cultura. Ao cantarem em inglês, os X-Wife colocaram-se por vontade própria fora da cultura lusófona. Mas enganam-se aqueles que pensam que eles se integraram na cultura anglo-saxónica. Porque eles queriam isso, mas não conseguem. Para um falante nativo de inglês, os X-Wife não são mais que uns nativos de um povo autóctone, que ainda não aprendeu bem a língua do império. São assim uma espécie de povo exótico, que os fará rir dado o esforço que faz por se fazer compreender.

Ser poliglota é bom. É ótimo. É excelente. Mas abdicar da própria cultura é um erro. Porque empobrece quem o faz. Porque quem o faz, ou o faz inconscientemente, porque já vive noutra cultura, porque a sua cultura de origem já não lhe diz nada, ou se o faz por moda, é apenas um pobre de espírito. Pobre de espírito no sentido mais literal que esta expressão pode ter, na medida em que a nossa cultura faz parte do nosso Ser.

Por muito que gostassem de ter nascido na inglaterra, os X-Wife não são ingleses. Ao terem nascido em Portugal, serão para sempre portugueses. Ao rejeitarem sê-lo, só ficam a perder.

O Zé Pedro admira-se como é que os X-Wife ainda não se afirmaram mais em Portugal. A resposta parece-me óbvia. Não se afirmaram aqui porque eles não gostam da sua cultura. Se não gostam da sua cultura, os portugueses também não gostam deles. Podem ser muito populares por entre a malta do bairro alto. Mas nunca serão na lusofonia. Será popular na sua cultura quem a souber abraçar e re-inventar, sempre dentro da tradição. Não há cultura sem tradição.

Se o Zé Pedro quer falar de cultura portuguesa, devia falar antes do concerto que vai haver este Sábado à noite - hoje - no MusicBox (que só nessa noite passará a chamar-se CaixaDeMúsica), em Lisboa, no Cais do Sodré, onde tocarão Os Golpes, Tiago Guillul e Os Pontos Negros, numa noite que passará a fazer parte da história da música popular portuguesa. Os Pontos Negros apresentarão o seu primeiro álbum de originais Magnífico Material Inútil, Os Golpes darão o seu primeiro concerto depois de atingida a sua maturidade enquanto banda e Tiago Guillul - o Midas português, que em tudo o que toca transforma em Pop - surgirá enquanto o justo mentor.

Se o Zé Pedro quisesse realmente defender a música popular portuguesa, promovia-a, em vez de defender os traidores da nação.

É mais português isto que X-Wife. Muito mais. Incrivelmente mais.

9 comentários:

tomas disse...

ganda post!
concordo plenamente
e não percebo como é ainda se dá ouvidos a tanta gente...

só tenho duas coisas a dizer
stealing orchestra
overdose no wc da feira popular

Almirante disse...

És grande. Uma noite em memória da língua portuguesa.

Calor Humano disse...

Duplamente obrigado tomás! Essa página parece mto fixe, vou sacar estas coisas com atenção.


Almirante, grande és tu. Sem ti, nada destas coisas teriam acontecido. Cada nau precisa do seu almirante. Eu sou só um relator, uma espécie de Pêro Vaz de Caminha desta nossa barca.

Wiskey Joe disse...

Espere lá.. se é a letra que torna a "música" portuguesa, então a nacionalidade da música instrumental é "instrumentaleza"?? E invertendo a ordem de ideias, a música "caralho voador" dos Faith No More é portuguesa?
Por acaso, já ouviu falar na música enquanto "linguagem universal"?
PS. Quando tiver tempo, se ainda não o fez, leia a "Origem da Tragédia", de Nietszche. Não é literatura portuguesa, é certo, mas pelo menos dar-lhe-á uma outra visão do que é a música e a arte.

Wiskey Joe disse...

Ah, já agora, sabia que o Zé Pedro é um dos sócios do MusicBox? Isto há coisas...

Calor Humano disse...

Caro Wiskey joe, por pura coincidência comprei a Origem da Tragédia há cerca de um mês atrás, e tenho-o aqui comigo. Se me quiseres recomendar algumas passagens referentes a este tema, terei todo o prazer em as ler primeiro para mais rapidamente podermos conversar.

Enquanto não o leio, o meu ponto de vista é o de que a Arte não é uma linguagem universal, nem tão pouco a música popular é somente "música".

Na minha opinião, a Arte é um código. Uma linguagem em código. Esse código é definido por uma coisa que é a tradição. Existe de facto uma tradição musical "instrumental" portuguesa e de todas as outras culturas e, essa sim, é o mais próximo do universal que podemos ter, mesmo que nunca o chegue a ser realmente - na medida em que é preciso, como espectador, estar inserido na cultura em que ela é produzida para a compreender - quem ouve pela primeira vez Jazz não o compreende, nem a chamada "música clássica", nem o rock, nem o fado, nem nenhum estilo/escola/tradição da Arte. É preciso conhecer. Mas com o tempo aprende-se a conhecer, e as linguagens musicais podem fundir-se e tornarem-se uma construção "multi-cultural".

O mesmo não acontece com as línguas. Na medida em que são sistemas de códigos muito mais fechados que a música (que é tendencialmente abstracta), as lígnuas não se misturam. Mesmo quando roubam palavras umas às outras, não há casos de línguas que se fundam, como pode acontecer com estilos musicais.

Os "estilos artísticos" musicais são exportáveis porque não são exclusivos, são inclusivos. Nenhum exclui o outro.

A questão das línguas é que não se misturam. Não são inclusivas. São uma grelha de compreensão do mundo. Ou se usa uma, ou se usa outra. Dessa forma, não se fundem como a música.

Assim, tendo em conta que ainda faz parte da definição de "ser português" o falar da língua portuguesa, da mesma forma, a "cultura portuguesa" é a que é falada nessa mesma língua, na medida em que toda ela evolui como um todo, alicerçada em dinÂmicas internas, independentemente das coisas que importa do exterior.

O que não existe é cultura portuguesa falada em alguma língua que não seja a língua de Portugal.

Em relação à canção Caralho Voador, considero que sim, que é parcialmente portuguesa, na medida em que parte da sua expressão só é compreensível se se falar o português.

Em relação ao Zé Pedro ser sócio do MusicBox, não sabia, mas faz sentido, em parte explica o nome. Ele ser sócio só torna toda a atitude dele mais clara - se é sócio sabia do concerto e não esteve lá (talvez não lhe tenha sido possível e isso eu respeito, obviamente), e preferiu divulgar os X-Wife mesmo sabendo que os Pontos Negros tocavam no clube do qual é sócio nessa noite. Tudo isto só me deixa a pensar que ainda bem que temos o Tim, se não os Xutos ainda se chamavam Kicks e nunca teriam sido uma das bandas mais importantes da cultura portuguesa (nem de nenhuma cultura).

Calor Humano disse...

PS: Sei de fonte segura que o Zé Pedro já ajudou os Pontos Negros no passado. Não o estou a acusar de ser contra seja o que for. Só estou a dizer que é um engano achar que os X-Wife fazem música portuguesa. Assim como é um erro cultural mas uma escolha economicamente acertada, chamar MusicBox a um espaço óptimo em Lisboa porque a marca "não ser português" vende mais. Cada um tem as suas prioridades quando faz seja o que for. Há quem queira fazer negócios, há quem queira ser famoso, há até quem queira fazer arte.

Unknown disse...

Duas coisas:
O Zé Pedro é da guirarra ritmo, só faz riffs;
Claro que um português deve cantar em português e também não tenho pachorra para quem não o faz. mas a língua é só um dos factores de identidade (embora fundamental). falas em tradição cultural e musical, mas devo dizer que os pontos negros, que tanto apregoas, não têm absolutamente nada de raízes portuguesas no que à música-música diz respeito. o estilo de som deles, e tudo o que isto implica (instrumentação, formas musicais, forma de cantar, postura em palco, atitude, pinta) é importada. é natural, no contexto musicalmente global em que crescemos. só para dizer que considerar estes "movimentos" bastiões da cultura portuguesa é uma afirmação no mínimo polémica.

Calor Humano disse...

Sim, tens toda a razão.

Eu tbém gostava que hoje em dia houvessem outros movimentos a que eu pudesse chamar bastiões da cultura portuguesa.