quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
domingo, 13 de dezembro de 2009
O perdão
Ela trabalha num daqueles balcões onde agora, nos centros comercias, vamos comprar esparguete com seis ingredientes e um molho.
Quando me atendeu foi fria, mas prestável. Disse-me o que tinham para beber, e eu escolhi. Nunca me olhou nos olhos. Mas não posso dizer que tenha sido antipática. Falava a olhar para baixo. Foi o normal do que uma portuguesa seria. Só que ela é africana.
Mas atrás de mim veio aquele rapazinho branco de nove anos, que ia comer esparguete à bolonhesa.
E há tantos anos que eu não via um olhar assim. Toda a cara dela se abriu sobre si própria, como uma flor. Iluminou-se com um sorriso rasgado enorme - tantos dentes! - que guardou incessante todo o tempo, quer olhasse para ele, ali todo direitinho a segurar sozinho no tabuleiro, quer não.
Ele fez-lhe muitas perguntas, ela ria-se, descontraída, esticava os braços, enrolava-se sobre si mesma, muito atenta, com muita atenção, debruçando-se para ele, com muita curiosidade. Falavam com puro prazer. Ela adora aquele menino. Por ele ser um menino. E ele adora-a, por ter aquela mulher feita, mas nova, no pico da beleza, toda para ele, como nenhum homem a tem, toda atenção. A sorrir e não esconder o que sente por não haver mal, por não haver nenhum risco em expor o amor, assim, nos olhos. O olhar dela era um olhar de puro Amor. Puro Amor e Bondade. Um olhar que tudo perdoava. Olhou-o como uma mãe olha um filho. Como a minha mãe, talvez um dia, me tenha olhado.
Despediram-se como se encontraram. Falavam os dois como se se conhecessem há muitos muitos anos, desde antes de terem aquela idade, como velhos amigos em que um se atrasou a crescer - toda ela menina e todo ele homem - como se fossem amigos desde o mundo que está para lá das barrigas das mães. Afastaram-se como se se fossem voltar a ver, ali mesmo, mais um milhão de vezes. Para sempre.
Eles não sabem que um dia ela vai voltar para a ilha de São Tomé (de onde é também o rapaz que cozinhou a minha massa recheada com espinafres, que me disse que o paraíso é lá e que quer voltar) e que nunca mais se verão. Não sabem isso, mas sabem que não faz mal, porque aquele olhar dela é para sempre.
Desde pequeno que nunca mais ninguém olhou assim para mim. Já sou crescido, a minha mãe gosta de mim de outra maneira. Assim, só talvez um dia a minha mulher, se gostar de mim. Mas é difícil, porque aquele olhar só se faz a uma criança, e crescer significa deixar de ser olhado assim para passar a olhar assim. Mas quais as consequências de nunca mais na vida ser olhado com amor, de nunca mais ser perdoado por se ser quem é?
Mas, se não ser mais filho significa deixar de receber este olhar, nunca ter filhos significa nunca na vida o fazer. Quais as consequências de nunca na vida ter o privilégio de se entregar assim a alguém?
Se ela quando me atendeu olhava para baixo, era porque o que ela esperava vinha dessa direcção.
Quando me atendeu foi fria, mas prestável. Disse-me o que tinham para beber, e eu escolhi. Nunca me olhou nos olhos. Mas não posso dizer que tenha sido antipática. Falava a olhar para baixo. Foi o normal do que uma portuguesa seria. Só que ela é africana.
Mas atrás de mim veio aquele rapazinho branco de nove anos, que ia comer esparguete à bolonhesa.
E há tantos anos que eu não via um olhar assim. Toda a cara dela se abriu sobre si própria, como uma flor. Iluminou-se com um sorriso rasgado enorme - tantos dentes! - que guardou incessante todo o tempo, quer olhasse para ele, ali todo direitinho a segurar sozinho no tabuleiro, quer não.
Ele fez-lhe muitas perguntas, ela ria-se, descontraída, esticava os braços, enrolava-se sobre si mesma, muito atenta, com muita atenção, debruçando-se para ele, com muita curiosidade. Falavam com puro prazer. Ela adora aquele menino. Por ele ser um menino. E ele adora-a, por ter aquela mulher feita, mas nova, no pico da beleza, toda para ele, como nenhum homem a tem, toda atenção. A sorrir e não esconder o que sente por não haver mal, por não haver nenhum risco em expor o amor, assim, nos olhos. O olhar dela era um olhar de puro Amor. Puro Amor e Bondade. Um olhar que tudo perdoava. Olhou-o como uma mãe olha um filho. Como a minha mãe, talvez um dia, me tenha olhado.
Despediram-se como se encontraram. Falavam os dois como se se conhecessem há muitos muitos anos, desde antes de terem aquela idade, como velhos amigos em que um se atrasou a crescer - toda ela menina e todo ele homem - como se fossem amigos desde o mundo que está para lá das barrigas das mães. Afastaram-se como se se fossem voltar a ver, ali mesmo, mais um milhão de vezes. Para sempre.
Eles não sabem que um dia ela vai voltar para a ilha de São Tomé (de onde é também o rapaz que cozinhou a minha massa recheada com espinafres, que me disse que o paraíso é lá e que quer voltar) e que nunca mais se verão. Não sabem isso, mas sabem que não faz mal, porque aquele olhar dela é para sempre.
Desde pequeno que nunca mais ninguém olhou assim para mim. Já sou crescido, a minha mãe gosta de mim de outra maneira. Assim, só talvez um dia a minha mulher, se gostar de mim. Mas é difícil, porque aquele olhar só se faz a uma criança, e crescer significa deixar de ser olhado assim para passar a olhar assim. Mas quais as consequências de nunca mais na vida ser olhado com amor, de nunca mais ser perdoado por se ser quem é?
Mas, se não ser mais filho significa deixar de receber este olhar, nunca ter filhos significa nunca na vida o fazer. Quais as consequências de nunca na vida ter o privilégio de se entregar assim a alguém?
Se ela quando me atendeu olhava para baixo, era porque o que ela esperava vinha dessa direcção.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Dar as mãos
Para que duas pessoas sejam felizes juntas não é necessário que tenham um passado igual, mas um futuro.
Não aquilo que foram mas aquilo que serão.
Não aquilo que foram mas aquilo que serão.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
O amor espande-se
Nada passará através do ódio. Só através do Amor.
Porque só o Amor tem espaço para alguma coisa lá dentro. Um espaço chamado dúvida.
Porque o ódio atrofia, mas o Amor faz crescer.
A prova disto é que o mundo existe. Só existe porque há mais Amor que ódio no mundo. Por algum estranho motivo, o Amor vence sempre.
Porque só o Amor tem espaço para alguma coisa lá dentro. Um espaço chamado dúvida.
Porque o ódio atrofia, mas o Amor faz crescer.
A prova disto é que o mundo existe. Só existe porque há mais Amor que ódio no mundo. Por algum estranho motivo, o Amor vence sempre.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Línguas
Já vos aconteceu estarem a falar com alguém de Amor e responderem-vos com política, sociologia ou economia?
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Casais
O sucesso de uma relação só depende de que uma das partes se sacrifique pela outra.
Há casos em que as duas se sacrificam, uma pela outra, e aí temos a felicidade. Mas é raro duas pessoas assim encontrarem-se.
E a isto se resume o assunto mais debatido de todos.
Há casos em que as duas se sacrificam, uma pela outra, e aí temos a felicidade. Mas é raro duas pessoas assim encontrarem-se.
E a isto se resume o assunto mais debatido de todos.
sábado, 28 de novembro de 2009
Eu sou mestiço
Arte portuguesa que não seja mestiça é mentirosa.
Porque é que não há mais Arte em Portugal?
Porque com critérios racionalistas geográficos e ideológicos, convenceram os portugueses que eles eram só europeus.
Quando tiraram o Mundo a Portugal tiraram Portugal ao Mundo.
Um artista que não saiba quem é não é artista.
E para começar, nem sabemos de onde viemos porque não sabemos onde fomos. Somos como uma criança, filha de pais divorciados, a quem convenceram que nunca teve mãe.
Porque é que não há mais Arte em Portugal?
Porque com critérios racionalistas geográficos e ideológicos, convenceram os portugueses que eles eram só europeus.
Quando tiraram o Mundo a Portugal tiraram Portugal ao Mundo.
Um artista que não saiba quem é não é artista.
E para começar, nem sabemos de onde viemos porque não sabemos onde fomos. Somos como uma criança, filha de pais divorciados, a quem convenceram que nunca teve mãe.
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
As intenções
Tudo é único.
Cada lufada de energia que nasce em nós só pode ser gasta de uma maneira.
Não volta.
A disciplina deve ser a reunião de condições para que, quando a energia vem, possa ser aproveitada como queremos.
Esse como está no tempo e está no espaço. A vida é uma bala. Uma só. E como contra um alvo giratório, há que disparar no momento certo.
A vida é uma bala que guardamos durante vinte anos, e que depois, disparamos.
Quem viva sem considerar que na vida tem apenas uma hipótese, necessariamente já não tem nenhuma.
Só há um gesto. Só há uma acção. Só há um resultado.
O homem que diz vou não vai, porque quando foi já não quis.
Cada lufada de energia que nasce em nós só pode ser gasta de uma maneira.
Não volta.
A disciplina deve ser a reunião de condições para que, quando a energia vem, possa ser aproveitada como queremos.
Esse como está no tempo e está no espaço. A vida é uma bala. Uma só. E como contra um alvo giratório, há que disparar no momento certo.
A vida é uma bala que guardamos durante vinte anos, e que depois, disparamos.
Quem viva sem considerar que na vida tem apenas uma hipótese, necessariamente já não tem nenhuma.
Só há um gesto. Só há uma acção. Só há um resultado.
O homem que diz vou não vai, porque quando foi já não quis.
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
Depressão
O Calor Humano: um blogue tão deprimente que as pessoas deprimidas até se convencem que são felizes.
sábado, 21 de novembro de 2009
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Pátria
Em Lisboa, por baixo do viaduto depois do Lux (quer dizer luxo em francês), dorme uma pessoa sem casa que tem a bandeira de Portugal colada à caixa de cartão sob a qual dorme.
Não tem casa mas tem pátria.
É um homem a quem não podemos chamar sem-abrigo.
Não tem casa mas tem pátria.
É um homem a quem não podemos chamar sem-abrigo.
domingo, 15 de novembro de 2009
Voz
Ao ouvir o Coro do Teatro Nacional de São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa a cantar As sete últimas palavras do Nosso Salvador na Cruz do Haydn, a gente pensa para quê falar se não for para sair isto?
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
A todos os meus mortos
Aceitar viver com consciência da morte permite-nos amar os mortos. Deixar de viver só no presente.
Quando se aceita Deus passa-se a viver na eternidade.
Porquê deixar de fora da vida tanto amor?
Quando se aceita Deus passa-se a viver na eternidade.
Porquê deixar de fora da vida tanto amor?
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Instaurar datas comemorativas pessoais
Nove de Novembro, o dia em que percebi a felicidade da tristeza. Que bater o mais possível no fundo era fantástico porque depois de cada depressão vem uma enorme felicidade. A partir daqui passei a ficar feliz de cada vez que ficava triste.
Felicidade que vem de percebermos que é natural estar triste e que nós não somos o centro do mundo por isso está tudo bem. O centro do mundo estar triste - aí a situação era preocupante. Mas o centro do mundo nunca fica triste.
O meu sonho é um dia casar-me e juntar as minhas datas às da minha mulher, às dos nossos filhos e às comuns e celebrarmos em conjunto cada uma delas. As datas comemorativas não são feriados, porque neste reino trabalha-se todos os dias.
Nota: Se a ingenuidade deste post vos incomodar não voltem a este blogue.
Felicidade que vem de percebermos que é natural estar triste e que nós não somos o centro do mundo por isso está tudo bem. O centro do mundo estar triste - aí a situação era preocupante. Mas o centro do mundo nunca fica triste.
O meu sonho é um dia casar-me e juntar as minhas datas às da minha mulher, às dos nossos filhos e às comuns e celebrarmos em conjunto cada uma delas. As datas comemorativas não são feriados, porque neste reino trabalha-se todos os dias.
Nota: Se a ingenuidade deste post vos incomodar não voltem a este blogue.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
Os pequeninos
Talvez só com Fé se possa ter o espírito jovem até ao fim, pois é saber que em relação a Deus somos sempre os pequeninos.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
Uma tatuagem que tivesse que renovar todos os dias
Será que, numa sociedade com tanto medo do compromisso, as tatuagens estarem na moda tem a ver com um colmatar histérico de uma necessidade natural humana de compromisso?
No entanto, o compromisso real é aquele que pode ser desfeito e nós escolhemos não desafazer. Quando passa a uma obrigação deixa de estar vivo.
Um anel pode tirar-se, uma tatuagem não.
No entanto, o compromisso real é aquele que pode ser desfeito e nós escolhemos não desafazer. Quando passa a uma obrigação deixa de estar vivo.
Um anel pode tirar-se, uma tatuagem não.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
Encontrar as ideias que faltam nos buracos entre as ideias que já tenho
A vida é várias coisas ao mesmo tempo.
Este mês, desde que te foste embora, tenho estado a descobrir as ideias que me faltam nos buracos entre as ideias que já tenho. Para te poder amar melhor.
Em Lisboa a tua marca ficou por toda a parte. Nos nossos passeios, unimos a cidade, como agora uno as minhas ideias, e nos dois casos é com contigo que o faço. A nossa mulher é a cola da nossa vida.
Contigo, porque para ti, consigo viver melhor. Tu que vieste de fora, deste-me o que já cá estava. Memórias para uma cidade inteira.
Agora, onde quer que eu vá, tu estás lá, à minha espera. Toda a cidade unida por ti, como se fosse a nossa casa e estivesses ora na sala ora na cozinha.
E fizeste a tudo na minha vida o que fizeste a Lisboa. Juntaste, colaste, aproximaste.
Quando não te tinha, procurava-te. Agora já não tenho de te procurar porque já estás em tudo. Agora tenho-te e posso finalmente viver.
Depois foste embora, mas não estás longe. O amor ficou. O que juntaste vai ficar para sempre junto.
Não escrevia desde que te vi pela primeira vez. Deus é o tempo, e Ele trouxe-te. Estive com Ele a aprender a amar-te melhor. Ficaria mais tempo. Dois anos para te dar um beijo. Ou foram vinte e três anos? Ou um dia?
É preciso tempo para amar.
Porque amar não é só o amor. É o antes e o depois. E se o amor for amor, cada depois é um antes, e cada antes é um depois.
Só a vida isso permite, porque só a vida é tempo, e só no tempo pode haver amor. Porque só a vida permite amar para sempre e só amar para sempre permite viver.
Obrigado, meu amor, por me dares a vida.
A nossa primeira mãe dá-nos a vida, a nossa segunda mãe é a mulher que nos dá o viver.
Este mês, desde que te foste embora, tenho estado a descobrir as ideias que me faltam nos buracos entre as ideias que já tenho. Para te poder amar melhor.
Em Lisboa a tua marca ficou por toda a parte. Nos nossos passeios, unimos a cidade, como agora uno as minhas ideias, e nos dois casos é com contigo que o faço. A nossa mulher é a cola da nossa vida.
Contigo, porque para ti, consigo viver melhor. Tu que vieste de fora, deste-me o que já cá estava. Memórias para uma cidade inteira.
Agora, onde quer que eu vá, tu estás lá, à minha espera. Toda a cidade unida por ti, como se fosse a nossa casa e estivesses ora na sala ora na cozinha.
E fizeste a tudo na minha vida o que fizeste a Lisboa. Juntaste, colaste, aproximaste.
Quando não te tinha, procurava-te. Agora já não tenho de te procurar porque já estás em tudo. Agora tenho-te e posso finalmente viver.
Depois foste embora, mas não estás longe. O amor ficou. O que juntaste vai ficar para sempre junto.
Não escrevia desde que te vi pela primeira vez. Deus é o tempo, e Ele trouxe-te. Estive com Ele a aprender a amar-te melhor. Ficaria mais tempo. Dois anos para te dar um beijo. Ou foram vinte e três anos? Ou um dia?
É preciso tempo para amar.
Porque amar não é só o amor. É o antes e o depois. E se o amor for amor, cada depois é um antes, e cada antes é um depois.
Só a vida isso permite, porque só a vida é tempo, e só no tempo pode haver amor. Porque só a vida permite amar para sempre e só amar para sempre permite viver.
Obrigado, meu amor, por me dares a vida.
A nossa primeira mãe dá-nos a vida, a nossa segunda mãe é a mulher que nos dá o viver.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
quinta-feira, 2 de julho de 2009
A origem do mal
Antidumping. Antitrust. Back-office. Benchmarking. Cash-flow. Clearing. Crash. Cross-selling. Currency. Dealer. Downsizing. Factoring. Front-office. Fixing. Franchising. Holding. Jet-lag. Joint-venture. Leasing. Management. Outdoor. Rent-a-car. Share. Trust. Turnover. Workstation.
Toda esta linguagem é boa. Com ela, quando esse sistema ruir, saber-se-há de que cultura veio o mal.
Mesmo no Brasil dizem cancer no lugar de câncro já com esta filosofia.
Toda esta linguagem é boa. Com ela, quando esse sistema ruir, saber-se-há de que cultura veio o mal.
Mesmo no Brasil dizem cancer no lugar de câncro já com esta filosofia.
terça-feira, 23 de junho de 2009
Erros
Os erros da nossa vida a maior parte das vezes não são coisas que fizemos.
São as coisas que não fizemos para estarmos a fazer essas.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
domingo, 14 de junho de 2009
Tua alma na gente
O António Variações morreu há vinte e cinco anos e continua tão vivo como nesse dia.
É por isso que não há homenagens. Nada mudou (desde o dia em que nos deste a possibilidade de ter uma verdadeira vida) desde esse dia de Santo António.
É por isso que não há homenagens. Nada mudou (desde o dia em que nos deste a possibilidade de ter uma verdadeira vida) desde esse dia de Santo António.
terça-feira, 9 de junho de 2009
Á procura da nitidez
Se todas as pessoas de todas as idades fizessem o seu testamento,
e à medida que a vida os transformasse,
o fossem alterando,
saberíamos todos como a morte vive connosco,
e passaríamos a valorizar muito mais cada momento vivos
e a saber quais são as nossas prioridades.
e à medida que a vida os transformasse,
o fossem alterando,
saberíamos todos como a morte vive connosco,
e passaríamos a valorizar muito mais cada momento vivos
e a saber quais são as nossas prioridades.
Se falares português e tiveres uma ideia incrível, é melhor escreveres uma canção, porque filosofar, só é possível em alemão
.
Língua,
de Caetano Veloso.
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
A Minha pátria é minha LÍNGUA!
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo LUSAMÉRICA latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo LUSAMÉRICA latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria!
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.
Língua,
de Caetano Veloso.
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
A Minha pátria é minha LÍNGUA!
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo LUSAMÉRICA latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo LUSAMÉRICA latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria!
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
quarta-feira, 3 de junho de 2009
O Sol
É tão bonito pensar que a cada segundo que passa, há mais um pedaço do mundo a apanhar directamente com Sol.
Luz como aquela que vejo chegar agora.
Luz como aquela que vejo chegar agora.
terça-feira, 2 de junho de 2009
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Não saber
As certezas destróem a poesia.
Só as nossas incertezas são nossas amigas.
As nossas dúvidas são a nossa maior riqueza.
Só as nossas incertezas são nossas amigas.
As nossas dúvidas são a nossa maior riqueza.
domingo, 31 de maio de 2009
Verão
Só o Verão é a verdadeira vida.
No Verão a casa cheira a pinheiros. Nos corredores cheira a árvores e há vento. Há vento dentro de casa, e parece tão natural que dou comigo a nem me lembrar que não é sempre assim.
Oiço o vento. Carregado com sons de coisas a aconter. Coisas a acontecer dentro do próprio vento.
A cozinha da minha casa no Verão cheira a louro e a temperos e à minha mãe.
No Verão a rua e a cidade cheiram a família. Como as casas das famílias em que cada casa cheira de sua maneira - cheira àquela família, e sempre que lá vamos cheira a eles - e nos prédios o cheiro sente-se até do lado de cá da porta da rua, como nos meus visinhos de baixo da casa da Costa, em que todo o primeiro andar cheirava a eles, e na minha varanda, que dava para o quintal deles, cheirava também.
No Verão a rua cheira aos cheiros misturados de todas as famílias de pessoas. Talvez por as pessoas estarem todas de janelas abertas, ou por andarem todas na rua (adoro ver pessoas na rua, assim frescas, com pouca roupa).
No Verão, quando durmo de janela aberta, cheira a noite, a quente e a cidade, e consigo saber tudo o que se está a passar lá fora só pelos cheiros - e também pelas buzinas e pelos gritos das pessoas felizes.
Também gosto de gritos no Verão. Todos os gritos no Verão são bons. Não consigo imaginar um grito incomodativo no Verão. São sempre de felicidade.
No Verão a casa cheira a pinheiros. Nos corredores cheira a árvores e há vento. Há vento dentro de casa, e parece tão natural que dou comigo a nem me lembrar que não é sempre assim.
Oiço o vento. Carregado com sons de coisas a aconter. Coisas a acontecer dentro do próprio vento.
A cozinha da minha casa no Verão cheira a louro e a temperos e à minha mãe.
No Verão a rua e a cidade cheiram a família. Como as casas das famílias em que cada casa cheira de sua maneira - cheira àquela família, e sempre que lá vamos cheira a eles - e nos prédios o cheiro sente-se até do lado de cá da porta da rua, como nos meus visinhos de baixo da casa da Costa, em que todo o primeiro andar cheirava a eles, e na minha varanda, que dava para o quintal deles, cheirava também.
No Verão a rua cheira aos cheiros misturados de todas as famílias de pessoas. Talvez por as pessoas estarem todas de janelas abertas, ou por andarem todas na rua (adoro ver pessoas na rua, assim frescas, com pouca roupa).
No Verão, quando durmo de janela aberta, cheira a noite, a quente e a cidade, e consigo saber tudo o que se está a passar lá fora só pelos cheiros - e também pelas buzinas e pelos gritos das pessoas felizes.
Também gosto de gritos no Verão. Todos os gritos no Verão são bons. Não consigo imaginar um grito incomodativo no Verão. São sempre de felicidade.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
A democracia
A democracia não é podermos viver todos juntos sendo iguais.
A democracia é podermos viver todos juntos sendo diferentes.
A democracia é podermos viver todos juntos sendo diferentes.
As qualidades
Amor. Quando duas pessoas valorizam um no outro as mesmas qualidades do outro que o outro valoriza em si.
Não descobri isto sozinho.
Não descobri isto sozinho.
terça-feira, 19 de maio de 2009
terça-feira, 12 de maio de 2009
"O princípio de todos os males é a desatenção"
Vivemos. Há lugares da vida que nunca tínhamos pensado possíveis. Se estivermos com atenção, afinal a vida pode ser muito mais do que tínhamos imaginado.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Arrependimento
Arrependi-me de escrever o texto anterior e agora já sei porquê.
Porque nada é para nada.
Porque nada é para nada.
(é isto uma semana de vida)
quarta-feira, 29 de abril de 2009
O Amor é o Bem
O Amor é uma força que nos leva, por si só, ao Bem.
Há imensas teorias sobre porque é que quando alguém namora ou está casado é sempre mais cobiçado que quando está solteiro (para desgraça do próprio).
Há teorias que falam sobre virilidade; sobre ser bom na cama; sobre o ser humano gostar de disputar o que é cobiçado; sobre alguém que está comprometido o estar porque é bom namorado ou marido e quem não está é porque há algo de errado com ele. Mas tudo isso são coisas menores. São só consequências da real coisa que faz essa pessoa ser assim, especial, brilhante. As pessoas comprometidas são combiçadas porque os outros sentem que o Amor está com elas.
E o Amor faz-nos bons. O amor faz-nos fazer as coisas bem. O Amor faz-nos Bem. O Amor é o Bem.
(As pessoas até ficam mais bonitas quando estão enamoradas...)
Li na internet uns textos disparatados que me deram a conhecer uma grande problemática darwinista do momento. Até é um pecado poético falar destas coisas assim, mas fa-lo-ei porque às vezes é preciso ir ganhar no terreno do adversário, não podemos ficar sempre em casa. A grande questão darwinista da semana é Porque é que as mulheres têm orgasmos?
Segundo eles e elas (também há senhoras a estudar o assunto), só os homens deviam tê-los, para que isso levásse à ejaculação, que é a sua função (é nestes momentos que se sente como a ciência é uma coisa que devia ser mais censurada que a pornografia).
As teorias dominantes falam de clitóris que são para as mulheres o que os mamilos são para os homens (que não tendo mamas também os têm). Como se o clitóris fosse uma coisa que ficou ali esquecida. Toda a gente que sabe o que é um clitóris, sabe que não é o mesmo que um mamilo.
Falam-se também de ursos. Teorias que comparam os Seres Humanos aos ursos, em que os machos dominantes têm mais tempo para copular e que portanto só esses dão orgasmos às fémeas, já que os outros têm de dar rapidinhas, ejacular e fugir quando o macho dominante se aproxima. Assim, a fémea ao ter orgasmos sabe que está com um grande macho dominante e que é com esse que deve ficar.
Havia outras teorias ainda mais ridículas.
Nenhuma me convenceu.
Se estes cientistas ainda fossem humanos, saberiam que, para nós, pessoas, a resposta é o Amor.
Saberiam que um homem que ama uma mulher deixa muitas vezes de sentir vontade de ter prazer com ela, deixa de olhar de maneira sexual para ela. Quem já amou sabe isto. Aquela vontade de ter prazer, que sente com todas as boazonas que passam na rua, desaparece com a pessoa amada. E falta de vontade de ter prazer é assim sinal de amor. Porque o homem que ama deixa de pensar em si. Deixa de pensar em si e no seu prazer e concentra-se só na mulher que ama e em fazê-la feliz, e em dar-lhe prazer a ela. Por isso as mulheres têm orgasmos, não para saberem que estão com o macho dominante, mas para saberem que estão com alguém que as ama.
Claro que há uma vida inteira de formas de dar amor que não têm nada a ver com orgasmos. Mas quanto mais enamorado, mais tenho a certeza que eles só podem ser para isso. Porque de facto, todas as outras utilizações que pudessem haver, são nada ao lado do Amor.
Há imensas teorias sobre porque é que quando alguém namora ou está casado é sempre mais cobiçado que quando está solteiro (para desgraça do próprio).
Há teorias que falam sobre virilidade; sobre ser bom na cama; sobre o ser humano gostar de disputar o que é cobiçado; sobre alguém que está comprometido o estar porque é bom namorado ou marido e quem não está é porque há algo de errado com ele. Mas tudo isso são coisas menores. São só consequências da real coisa que faz essa pessoa ser assim, especial, brilhante. As pessoas comprometidas são combiçadas porque os outros sentem que o Amor está com elas.
E o Amor faz-nos bons. O amor faz-nos fazer as coisas bem. O Amor faz-nos Bem. O Amor é o Bem.
(As pessoas até ficam mais bonitas quando estão enamoradas...)
Li na internet uns textos disparatados que me deram a conhecer uma grande problemática darwinista do momento. Até é um pecado poético falar destas coisas assim, mas fa-lo-ei porque às vezes é preciso ir ganhar no terreno do adversário, não podemos ficar sempre em casa. A grande questão darwinista da semana é Porque é que as mulheres têm orgasmos?
Segundo eles e elas (também há senhoras a estudar o assunto), só os homens deviam tê-los, para que isso levásse à ejaculação, que é a sua função (é nestes momentos que se sente como a ciência é uma coisa que devia ser mais censurada que a pornografia).
As teorias dominantes falam de clitóris que são para as mulheres o que os mamilos são para os homens (que não tendo mamas também os têm). Como se o clitóris fosse uma coisa que ficou ali esquecida. Toda a gente que sabe o que é um clitóris, sabe que não é o mesmo que um mamilo.
Falam-se também de ursos. Teorias que comparam os Seres Humanos aos ursos, em que os machos dominantes têm mais tempo para copular e que portanto só esses dão orgasmos às fémeas, já que os outros têm de dar rapidinhas, ejacular e fugir quando o macho dominante se aproxima. Assim, a fémea ao ter orgasmos sabe que está com um grande macho dominante e que é com esse que deve ficar.
Havia outras teorias ainda mais ridículas.
Nenhuma me convenceu.
Se estes cientistas ainda fossem humanos, saberiam que, para nós, pessoas, a resposta é o Amor.
Saberiam que um homem que ama uma mulher deixa muitas vezes de sentir vontade de ter prazer com ela, deixa de olhar de maneira sexual para ela. Quem já amou sabe isto. Aquela vontade de ter prazer, que sente com todas as boazonas que passam na rua, desaparece com a pessoa amada. E falta de vontade de ter prazer é assim sinal de amor. Porque o homem que ama deixa de pensar em si. Deixa de pensar em si e no seu prazer e concentra-se só na mulher que ama e em fazê-la feliz, e em dar-lhe prazer a ela. Por isso as mulheres têm orgasmos, não para saberem que estão com o macho dominante, mas para saberem que estão com alguém que as ama.
Claro que há uma vida inteira de formas de dar amor que não têm nada a ver com orgasmos. Mas quanto mais enamorado, mais tenho a certeza que eles só podem ser para isso. Porque de facto, todas as outras utilizações que pudessem haver, são nada ao lado do Amor.
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Canção para o país do Mar
Há um país humilde que se chama apenas porto, porque sabe que o seu povo não é da terra.
O seu povo está sempre em movimento, mas também não é nómada. É um povo que vive no mar.
À noite, vem a Terra. Para descansar na praia, à luz de uma fogueira, e partir em novas aventuras milenares. É um país que não fica em casa.
Um povo que sabe que, se cada povo fosse um órgão da Humanidade, ele seria certamente o Sangue.
Se fosse um povo da montanha, o seu país chamar-se-ia Montanhal.
Assim, chama-se Portugal. Nosso porto-pátria.
Esta canção é para esse país, por um muito sub-valorizado seu artista.
O seu povo está sempre em movimento, mas também não é nómada. É um povo que vive no mar.
À noite, vem a Terra. Para descansar na praia, à luz de uma fogueira, e partir em novas aventuras milenares. É um país que não fica em casa.
Um povo que sabe que, se cada povo fosse um órgão da Humanidade, ele seria certamente o Sangue.
Se fosse um povo da montanha, o seu país chamar-se-ia Montanhal.
Assim, chama-se Portugal. Nosso porto-pátria.
Esta canção é para esse país, por um muito sub-valorizado seu artista.
Queda do Império
por Vitorino
Perguntei ao vento
Onde foi encontrar
Mago sopro encanto
Nau da vela em cruz
Foi nas ondas do mar
Do mundo inteiro
Terras da perdição
Parco império mil almas
Por pau de canela e mazagão
Pata de negreiro
Tira e foge à morte
Que a sorte é de quem
A terra amou
E no peito guardou
Cheiro da mata eterna
Laranja luanda
Sempre em flor.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
quarta-feira, 22 de abril de 2009
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Histórias
Havia uma vez, num lugar, duas pessoas tão felizes juntas, que ao fim do dia, quando ela se deitava sobre o colo dele e o abraçava para ouvir, até adormecer, as suas histórias da mais pura e sonhadora felicidade, a ele lhe bastava contar o resumo do dia que acabaram de passar juntos.
Definições
Deus: a única companhia de quem está só.
Casa: o único lugar onde um homem pode chorar.
Envelhecer: gostar de viver.
Casa: o único lugar onde um homem pode chorar.
Envelhecer: gostar de viver.
terça-feira, 14 de abril de 2009
Morte
Se não morrêssemos, seríamos uma raça com muito menos interesse.
Seríamos, certamente, seres imensamente arrogantes.
Pelo contrário, sermos assim como somos, faz de cada um de nós um herói.
Mais heróico a cada dia que aguenta vivo.
sábado, 11 de abril de 2009
Datas
A melhor banda portuguesa em actividade apresenta o seu primeiro disco no primeiro dia de Maio no Santiago Alquimista, um lugar de Cerveja e Refresco, em Lisboa, Portugal.
(BAR = Beer and Refreshment)
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Para abrigar as feridas
A cada dia que passa construo a minha casa com as estacas que me espetam no coração.
quarta-feira, 8 de abril de 2009
domingo, 5 de abril de 2009
As desabraçadas
Sábado.
Estou no carro às 4:25 da manhã. Saí do trabalho.
Se esta fosse uma civilização digna, não havia a esta hora, no meu país inteiro, nenhuma mulher que não estivesse abraçada.
Mas não pareciam nada abraçadas as mulheres que eu via no passeio, a sair do Bairro Alto.
Especialmente aquela que deitada no chão vomitava para o lado, para os pés da amiga. Essa parecia bastante desabraçada.
O que é que ela está aqui a fazer? Como é que não há ninguém para a pegar ao colo?
Estou no carro às 4:25 da manhã. Saí do trabalho.
Se esta fosse uma civilização digna, não havia a esta hora, no meu país inteiro, nenhuma mulher que não estivesse abraçada.
Mas não pareciam nada abraçadas as mulheres que eu via no passeio, a sair do Bairro Alto.
Especialmente aquela que deitada no chão vomitava para o lado, para os pés da amiga. Essa parecia bastante desabraçada.
O que é que ela está aqui a fazer? Como é que não há ninguém para a pegar ao colo?
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Distrair-se
Não sei se já escrevi esta frase aqui. Mas uma vez uma pessoa muito importante disse-ma e bastou uma vez para que nunca me tenha esquecido dela.
As pessoas falam em distrair-se como se não soubessem que essa palavra significa estar desconcentrado.
As pessoas falam em distrair-se como se não soubessem que essa palavra significa estar desconcentrado.
quinta-feira, 2 de abril de 2009
quarta-feira, 1 de abril de 2009
Os impostos
Há umas centenas de coisas que só se compreendem quando se é adulto, ao contrário do que se pensa quando se é novo. E é bom que seja assim, menos nos casos em que as pessoas páram de crescer e ficam reféns das suas idiosincrasias opinativas juvenis para o resto da vida.
Até hoje nunca tinha compreendido a tentação de ter um negócio criminoso. Pensava Não é muito mais simples ter um negócio permitido pela lei?
Essa tentação só se compreende quando se começa a pagar impostos.
Qualquer opinião sobre a sociedade que não tenha isto em conta (e mais as outras tais centenas de coisas que só se compreendem quando se é adulto) não é válida.
Assumir isto é definir mais claramente os motivos pelos quais, sabendo-o, se continua a não ter um negócio criminoso.
Até hoje nunca tinha compreendido a tentação de ter um negócio criminoso. Pensava Não é muito mais simples ter um negócio permitido pela lei?
Essa tentação só se compreende quando se começa a pagar impostos.
Qualquer opinião sobre a sociedade que não tenha isto em conta (e mais as outras tais centenas de coisas que só se compreendem quando se é adulto) não é válida.
Assumir isto é definir mais claramente os motivos pelos quais, sabendo-o, se continua a não ter um negócio criminoso.
terça-feira, 31 de março de 2009
Amar
Amar é passar a ter um motivo para gostarmos de ser nós.
Por termos o previlégio de amar quem amamos.
Por termos o previlégio de amar quem amamos.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Braços
Amar alguém é passar a ter quatro braços, dois dos quais andam por aí no mundo a fazer coisas boas para nós sem nós os controlarmos, e nós por eles.
Para poder viver
A coisa mais importante para poder viver é compreender como ninguém é perfeito. Em linguagem religiosa: só Deus é perfeito.
E saber aceitar.
Nenhuma decisão na nossa vida pode ser baseada nos defeitos das pessoas à nossa volta. Só nas qualidades.
Pois no topo dessa lista de pessoas não perfeitas, estamos sempre nós.
Aceitar os outros pensando como é que eles me aceitam a mim?
E saber aceitar.
Nenhuma decisão na nossa vida pode ser baseada nos defeitos das pessoas à nossa volta. Só nas qualidades.
Pois no topo dessa lista de pessoas não perfeitas, estamos sempre nós.
Aceitar os outros pensando como é que eles me aceitam a mim?
segunda-feira, 23 de março de 2009
Isto para mim ainda é ontem
Às vezes saio do trabalho às sete da manhã.
Mas confesso, gosto mesmo bué.
Quando se sai do trabalho às sete da manhã, as escadas do prédio cheiram a café.
Lá dentro das casas ouvimos as crianças a acordarem e as mães a mandarem-nas lavar os dentes.
E quando vamos de carro para casa, as outras pessoas conduzem ainda devagarinho, sem pressas nem ânsias, porque ainda estão a viver a pensar nos sonhos que tiveram.
Na rádio, os locutores ainda falam baixo, sussurram e dizem coisas meigas.
Na IC19, as pessoas que têm hortas na berma da estrada acabaram de chegar e esperguiçam-se antes de começaram a trabalhar. Da mesma maneira que um pouco antes se esperguiçavam os distribuidores de publicidades que estavam no Marquês de Pombal vestidos de esponjas de detergente CIF.
As madrugadas em Lisboa parecem um filme do Ozu.
As madrugadas são a mais bela parte do dia. Foi hoje quando vinha para casa, que a sua beleza me fez perceber finalmente como apreciar os prédios portugueses em toda sua beleza e sentido. Quando vamos a Espanha, vemos aqueles prédios em tijolo e pensamos Claro, faz sentido, são quentes, acolhedores, com toldos, que agradáveis, como os espanhóis. Quando vamos a França, vemos aqueles prédios elegantes, educados, altivos, e agradáveis, também eles como os franceses, e pensamos Faz sentido. O mesmo para o resto dos lugares do mundo. Mas até hoje ainda não tinha percebido essa unidade absoluta das construções da nossa civilização. Agora percebi. É que todas as casas, prédios e construções portuguesas de qualquer tipo, parecem que foram banhadas pelo Mar. Pertencem a uma arquitectura marinha. Parece que cada tijolo foi banhado em água salgada, baptizado numa bacia que cada pedreiro tem do seu lado, antes de ser posto em cima dos anteriores, todos abençoados. E o mesmo para as tintas, dissolvidas em água do mar. E os azulejos, magníficos azulejos onde se podia surfar. Os prédios portugueses sabem a mar.
Mas confesso, gosto mesmo bué.
Quando se sai do trabalho às sete da manhã, as escadas do prédio cheiram a café.
Lá dentro das casas ouvimos as crianças a acordarem e as mães a mandarem-nas lavar os dentes.
E quando vamos de carro para casa, as outras pessoas conduzem ainda devagarinho, sem pressas nem ânsias, porque ainda estão a viver a pensar nos sonhos que tiveram.
Na rádio, os locutores ainda falam baixo, sussurram e dizem coisas meigas.
Na IC19, as pessoas que têm hortas na berma da estrada acabaram de chegar e esperguiçam-se antes de começaram a trabalhar. Da mesma maneira que um pouco antes se esperguiçavam os distribuidores de publicidades que estavam no Marquês de Pombal vestidos de esponjas de detergente CIF.
As madrugadas em Lisboa parecem um filme do Ozu.
As madrugadas são a mais bela parte do dia. Foi hoje quando vinha para casa, que a sua beleza me fez perceber finalmente como apreciar os prédios portugueses em toda sua beleza e sentido. Quando vamos a Espanha, vemos aqueles prédios em tijolo e pensamos Claro, faz sentido, são quentes, acolhedores, com toldos, que agradáveis, como os espanhóis. Quando vamos a França, vemos aqueles prédios elegantes, educados, altivos, e agradáveis, também eles como os franceses, e pensamos Faz sentido. O mesmo para o resto dos lugares do mundo. Mas até hoje ainda não tinha percebido essa unidade absoluta das construções da nossa civilização. Agora percebi. É que todas as casas, prédios e construções portuguesas de qualquer tipo, parecem que foram banhadas pelo Mar. Pertencem a uma arquitectura marinha. Parece que cada tijolo foi banhado em água salgada, baptizado numa bacia que cada pedreiro tem do seu lado, antes de ser posto em cima dos anteriores, todos abençoados. E o mesmo para as tintas, dissolvidas em água do mar. E os azulejos, magníficos azulejos onde se podia surfar. Os prédios portugueses sabem a mar.
quarta-feira, 18 de março de 2009
Provas
A cada dia que passa sou capaz de ver mais provas de que Deus existe.
Mas a questão não parece ser se existe.
A questao parece ser:
Sim, Existe. Mas o que fazer com isso?
Mas a questão não parece ser se existe.
A questao parece ser:
Sim, Existe. Mas o que fazer com isso?
terça-feira, 17 de março de 2009
Caminhar
Hoje vi um passarinho preto a levantar voo à frente do meu carro, quando eu ia na direcção dele na estrada.
Como deve ser maravilhoso voar. Deve ser parecido com nadar debaixo de água, quando impulsionamos o nosso corpo com os nossos movimentos e magicamente ele se move, navega.
Talvez os pássaros estejam já tão habituados a voar que não sintam mais essa excitação, essa maravilha, como especial. Tal como nós já não sentimos o andar.
Mas como é incrível também o andar.
Uma perna, outra perna, movimento. Em frente. Para trás. Lentamente, rápido, mais rápido.
De ora em diante vou tentar caminhar como se voasse. Glorificando o caminho valorizando-o. Percebendo que, como no ar, ele não existe antes de ser caminhado.
Como deve ser maravilhoso voar. Deve ser parecido com nadar debaixo de água, quando impulsionamos o nosso corpo com os nossos movimentos e magicamente ele se move, navega.
Talvez os pássaros estejam já tão habituados a voar que não sintam mais essa excitação, essa maravilha, como especial. Tal como nós já não sentimos o andar.
Mas como é incrível também o andar.
Uma perna, outra perna, movimento. Em frente. Para trás. Lentamente, rápido, mais rápido.
De ora em diante vou tentar caminhar como se voasse. Glorificando o caminho valorizando-o. Percebendo que, como no ar, ele não existe antes de ser caminhado.
segunda-feira, 9 de março de 2009
quinta-feira, 5 de março de 2009
quarta-feira, 4 de março de 2009
Trocar de corpo
Uma vez quando estava no sétimo ano, perguntei à minha colega de carteira, que era a pior aluna da turma, se ela já pensara como seria se fosse possível por o nosso cérebro no corpo de outra pessoa e o dessa pessoa no nosso.
Ela respondeu Ficávamos a pensar com as ideias de outra pessoa.
Ela respondeu Ficávamos a pensar com as ideias de outra pessoa.
terça-feira, 3 de março de 2009
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
O que arde
Para ele até àquele dia, O que arde cura significara sempre O que cura arde.
Ele tomava os charopes, mas pensava que meter os dedos na ficha não o ia ajudar na tosse. Ele achava até que o provérbio estava errado. Os seus pensamentos eram tristes nesses anos, e revelam a barbárie em que vivia.
Mas a Tradição, a mãe-de-tudo, a quem ele não hesitara voltar as costas, tinha algo guardado para ele, e fê-lo arder, arder.
E lá ia ele, pensando que escolhia os ardores e que, dentro deles, escolhia até os melhores.
Mas naquele dia ele não pode mais escolher e finalmente percebeu que a secular sapiência estava certa.
Todas as dores ensinam e afinal a sabedoria está ao alcance de todos. As pessoas que se sentem estúpidas que dêem uma cabeçada na parede e logo vêem.
Entre golpes que lhe tiraram pedaços do animal que nascera, sentiu vindos de todos os lados e a acertarem-lhe por dentro e por fora ardores que laqueavam artérias sem as quais afinal o sangue só fluia para onde devia.
Ele ouvira dizer, uma vez na televisão, que as pessoas saudáveis são aquelas que, em vez de ficarem paradas a pensar nas coisas, as vivem. Aquelas que não ficam a pensar durante anos Será que devo ter um filho? Será que mereço? Será que sou capaz? Sim? Não? acabando por ter um, mas sim as que têm o filho e pronto.
Talvez tenhamos então de ser um bocadinho menos saudáveis para ser melhores pensou ele.
Talvez tenhamos de ser um bocadinho doentes no corpo para podermos ser um bocadinho mais saudáveis na alma. Talvez até a própria ideia de saúde seja uma doença.
Talvez um animal-homem doente seja um humano-homem saudável.
Porque depois de arder, ele percebeu que afinal parecia que tudo o que nos mata um pouco nos faz maiores, como a dor do parto que mata fazendo a vida ficar maior.
Foi nesse dia que escreveu no caderno que sempre o acompanhava, no bolso: Direito número um dos homens: direito ao sofrimento.
Afinal os seus cabelos brancos não eram sinal de morte, mas de vida.
Ele tomava os charopes, mas pensava que meter os dedos na ficha não o ia ajudar na tosse. Ele achava até que o provérbio estava errado. Os seus pensamentos eram tristes nesses anos, e revelam a barbárie em que vivia.
Mas a Tradição, a mãe-de-tudo, a quem ele não hesitara voltar as costas, tinha algo guardado para ele, e fê-lo arder, arder.
E lá ia ele, pensando que escolhia os ardores e que, dentro deles, escolhia até os melhores.
Mas naquele dia ele não pode mais escolher e finalmente percebeu que a secular sapiência estava certa.
Todas as dores ensinam e afinal a sabedoria está ao alcance de todos. As pessoas que se sentem estúpidas que dêem uma cabeçada na parede e logo vêem.
Entre golpes que lhe tiraram pedaços do animal que nascera, sentiu vindos de todos os lados e a acertarem-lhe por dentro e por fora ardores que laqueavam artérias sem as quais afinal o sangue só fluia para onde devia.
Ele ouvira dizer, uma vez na televisão, que as pessoas saudáveis são aquelas que, em vez de ficarem paradas a pensar nas coisas, as vivem. Aquelas que não ficam a pensar durante anos Será que devo ter um filho? Será que mereço? Será que sou capaz? Sim? Não? acabando por ter um, mas sim as que têm o filho e pronto.
Talvez tenhamos então de ser um bocadinho menos saudáveis para ser melhores pensou ele.
Talvez tenhamos de ser um bocadinho doentes no corpo para podermos ser um bocadinho mais saudáveis na alma. Talvez até a própria ideia de saúde seja uma doença.
Talvez um animal-homem doente seja um humano-homem saudável.
Porque depois de arder, ele percebeu que afinal parecia que tudo o que nos mata um pouco nos faz maiores, como a dor do parto que mata fazendo a vida ficar maior.
Foi nesse dia que escreveu no caderno que sempre o acompanhava, no bolso: Direito número um dos homens: direito ao sofrimento.
Afinal os seus cabelos brancos não eram sinal de morte, mas de vida.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
O equívoco
O equívoco começa nas pessoas não saberem que o comunismo é uma ramificação do cristianismo.
Continua em as pessoas acharem que o folclore português são só os Pauliteiros de Miranda.
Acaba em as pessoas pressistirem em chamar cantor de intrevenção ao Zeca Afonso.
Começa mesmo a doer. Cantor de intrevenção, tipo Polícia de intervenção.
A questão é em Portugal a Arte continuar a ser confundida com política. O José Saramago é o da esquerda, o António Lobo Antunes é o do centro, a Agustina Bessa-Luís é a da direita.
Se em Portugal se soubesse o que significa Arte, já se tinha percebido que o Zeca Afonso era um dos maiores de sempre.
Na triste e limitadora necessidade de definições da tradição ango-saxónica de rotular e empacotar tudo como quem embala para o capitalismo, chamemos-lhe pelo menos músico folk (que tal inventarmos folc, para o folclore português?).
A primeira canção que o Bob Dylan escreveu era sobre um sindicalista de esquerda que foi assassinado lá numas minas nos Estados Unidos. O Bob Dylan também é um cantor de intervenção? Pelo menos o capitalismo salvou-o de ser.
Porque, sim, o Zeca era comunista, mas isso é só um partido, uma ideologia. Coisas menores quando comparadas com a Arte.
A relação com o divino, que o comunismo não lhe permitiria, está nas canções. A dor. O amor. A vida. O drama. A sobrevivência. A potência do sentir. A saudade. A inteligência. A luta por aquilo em que se acredita. O olhar que atravessa as barreiras e concilia o inconciliado.
É que a alma dele era muito maior. Eu nem sei bem de que tamanho era.
Continua em as pessoas acharem que o folclore português são só os Pauliteiros de Miranda.
Acaba em as pessoas pressistirem em chamar cantor de intrevenção ao Zeca Afonso.
Começa mesmo a doer. Cantor de intrevenção, tipo Polícia de intervenção.
A questão é em Portugal a Arte continuar a ser confundida com política. O José Saramago é o da esquerda, o António Lobo Antunes é o do centro, a Agustina Bessa-Luís é a da direita.
Se em Portugal se soubesse o que significa Arte, já se tinha percebido que o Zeca Afonso era um dos maiores de sempre.
Na triste e limitadora necessidade de definições da tradição ango-saxónica de rotular e empacotar tudo como quem embala para o capitalismo, chamemos-lhe pelo menos músico folk (que tal inventarmos folc, para o folclore português?).
A primeira canção que o Bob Dylan escreveu era sobre um sindicalista de esquerda que foi assassinado lá numas minas nos Estados Unidos. O Bob Dylan também é um cantor de intervenção? Pelo menos o capitalismo salvou-o de ser.
Porque, sim, o Zeca era comunista, mas isso é só um partido, uma ideologia. Coisas menores quando comparadas com a Arte.
A relação com o divino, que o comunismo não lhe permitiria, está nas canções. A dor. O amor. A vida. O drama. A sobrevivência. A potência do sentir. A saudade. A inteligência. A luta por aquilo em que se acredita. O olhar que atravessa as barreiras e concilia o inconciliado.
É que a alma dele era muito maior. Eu nem sei bem de que tamanho era.
Por José Afonso
Fui à beira do mar
Ver o que lá havia
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia
Ó cantador alegre
Que é da tua alegria
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria
Desde então a lavrar
No meu peito a alegria
Ouço alguém a bradar
Aproveita que é dia
Sentei-me a descansar
Enquanto amanhecia
Entre o céu e o mar
Uma proa rompia
Desde então a bater
No meu peito em segredo
Sinto uma voz dizer
Teima, teima sem medo
Fui à beira do mar
Ver o que lá havia
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia
Ó cantador alegre
Que é da tua alegria
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria
Desde então a lavrar
No meu peito a alegria
Ouço alguém a bradar
Aproveita que é dia
Sentei-me a descansar
Enquanto amanhecia
Entre o céu e o mar
Uma proa rompia
Desde então a bater
No meu peito em segredo
Sinto uma voz dizer
Teima, teima sem medo
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
As poças de lama
Eu trabalho à noite. Saio por volta das quatro e meia da manhã. A hora de saída que está combinada é às quatro, mas uma pessoa acaba sempre por ficar mais uns minutos a arrumar as coisas e à conversa.
Aconteceu que hoje saí mais cedo. Eram umas três horas quando o patrão disse que por hoje estávamos terminados. E por hoje terminados arrumei as coisas. E saí.
Este inverno tem chovido imenso em Lisboa. Todos os dias chove e a humidade no ar é imensa, parece que conseguimos comê-la. Além disso, está muito frio. Atravessava a IC19, vazia (uma visão incrível). Chovia. Aquela estrada tão deserta e eu ali, o seu único dono. Aquela estrada tão deserta e eu a sentir-me tão sozinho.
Pensei que ainda queria ver alguma pessoa antes de ir dormir. Algum ser humano, alguém vivo. Antes de partir para o dia de amanhã, queria sentir que hoje ainda olhava para alguém que nunca tivesse visto antes, ou que fazia alguma coisa que nunca tinha feito.
Ia na IC19 e saí na primeira saída que apareceu. Fui conduzindo pelo subúrbio a dentro, sem saber para onde ia. Fui atravessando as ruas desertas e húmidas, iluminadas pela luz quente laranja.
Não sei como é ao pé das vossas casas, nem que cor vocês associam à noite. Mas aqui nos subúrbios, à noite é tudo laranja. As luzes laranja reflectiam-se nas poças de água na estrada escura, nas janelas escuras e nas montras escuras. Ninguém na rua. Não encontrei nem uma pessoa.
Caramba, nem um gangue! No meu tempo, no subúrbio à noite, havia gangues. Haviam grupos de pessoal novo a atirar caixotes do lixo para a estrada. Havia pessoal sentado em muros a fumar charros. Agora já não há nada. Só pilhas e pilhas de janelas sem luz amontoadas em forma de prédios (às vezes, com sorte, vemos a meio da noite uma luz de cozinha acesa - basta ver a cor da luz para se saber que é uma cozinha, assim uma espécie de branco embaciado - onde alguma mulher bebe chocolate quente por não conseguir dormir ou algum filho se masturba - nesses casos normalmente só vemos a luz da televisão acesa).
À noite no subúrbio, não se vendo gente, vemos milhões de carros vazios, assim uma espécie de carcaças abandonadas que são os corpos reais das pessoas que ficam ali quando elas se despem e levam o essencial para casa.
Que não haja ninguém na rua por estar frio eu ainda posso tentar perceber, mas que à noite no subúrbio, já nem nos carros se veja animação? É muito triste. Nem um só vidro de carro embaciado, nem um só par de pernas nuas oscilando. Depois dizem que não há bebés. Se não se faz amor à noite faz-se quando?
Antigamente, no subúrbio, fossem gangues, fossem apaixonados, havia pelo menos pessoas que escolhiam ser livres, tanto quanto podiam. Não eram capitalistas. Mesmo que fossem só adolescentes, eram pessoas que escolhiam não se limitar a seguir um plano. Tinham a ousadia de sair de casa à hora que quisessem. A grande coragem de se abrir às experiêcias de vida e à natureza selvagem e incontrolável do Ser Humano. Felizes nós porque já não há bandidos à noite na rua. Sim, não há porque estão presos a um estilo de vida que nos afasta uns dos outros. Presos à solidão.
Continuei a conduzir. A ver os prédios, as lojas, os cantos misteriosos. E foi assim que cheguei à minha escola primária.
A penúltima vez que lá tinha ido fora há uns dois anos. A última, foi num sonho que tive o Verão passado quando dormi na casa nova do meu amigo mais antigo, com quem passei a escola primária.
Não sei como acontece com vocês, mas comigo, eu sonho sempre com os lugares muito adulterados em relação à realidade. Nos meus sonhos, todos os lugares são uma construção enorme, grandiosa, épica e labiríntica sobre a estrutura base do lugar com que sonho.
Mas vendo a minha escola primária, às três e tal da manhã, cá de fora das grades, ela parecia igual ao sonho. A minha escola primária estava mais real do que a realidade!
Andei de carro à volta dela. Parei o carro e saí. Ali estava eu, um grandecíssimo homem, enorme e de barba, que se eu vira ali à quinze anos atrás me faria sentir muito medo.
Olhei através das grades, à procura da árvore à qual trepávamos, eu e os meus amigos, que se chamava Casa da Árvore. E ela está lá. Vinte anos depois. E também cresceu. Está já velha, desgastada e enfraquecida. No meio de coisas novas.
Olhei melhor e agora vi muitos lugares que não reconheci, muitos espaços que não pareciam os mesmos. Pensei em saltar a grade da escola, mas não saltei. Queria partir à descoberta daquele lugar da minha infância.
Continuei a olhar, a tentar distinguir algo conhecido no escuro. E foi aí que as vi. Num cantinho escuro do pátio, entre dois muros, no espaço de uns quatro metros quadrados, continuam a formar-se, com a chuva e a terra, as mesmas poças de lama de sempre.
Vinte anos de poças de lama no mesmo lugar.
Uma das memórias antigas que tenho daquele espaço (que é muito mais que uma escola) é de, no cantinho ao pé da Casa da Árvore, passar a correr por cima das grandes poças de lama, atrás de outro menino com um pau na mão, um rapaz de óculos redondos um ano mais velho que eu (que hoje continuo a ver passar na rua e com quem nunca falei), com uma camisola vermelha rota debaixo do braço, no sovaco, coisa que eu nunca vira antes, e de eu pensar Como é que ele fez aquele buraco debaixo do braço? e de ele começar a atirar bolas de lama para os outros e eu e mais dois amigos nos desviarmos para não apanharmos também, porque as nossas mães iam ficar lixadas se chegássemos com uma bola de lama estampada nas nossas camisolas. Isto depois de termos estado a brincar à volta das grandes poças de água e lama que ali sempre se formavam enquanto começara já a chover e as contínuas já tinham chamado todos os meninos mas nós tínhamos desobedecido e ficado ali sozinhos até termos ficado só nós, rebeldes, o silêncio cinzento e a chuva, naquele lugar algo escondido (sim, porque as minhas escolas sempre foram construídas em terrenos íngremes, pelo que tinham montes de patamares que permitiam milhares de esconderijos), a sentirmos o recreio vazio, a brincar ao som da água a cair, com um silêncio próximo do que ouvi esta noite enquanto olhava para aquelas mesmas poças, que não esperava jamais reencontrar, que só vi por, no escuro, reflectirem as luzes laranja do meu país à noite.
E foi naquelas poças que encontrei a pessoa que estava à procura de ver antes de dormir. Esta noite recolhi o menino que me pareceu que tinha ficado vinte anos ali, à chuva e ao frio, com a camisola suja de lama e as costas molhadas, à porta da escola à minha espera, e que eu me tinha esquecido de vir buscar.
Abri-lhe a porta. Entrámos os dois no carro. E partimos.
Ao voltar para casa, no meu carro preto de pára-choques rebentado, senti uma força estranha no peito. Sabem aquela sensação, quando é Natal, de que o Natal veio demasiado cedo este ano? É que sinto que para mim o Natal foi hoje. O dia em que senti que era Natal foi hoje. Senti-o tão forte. Apetece-me estar com a minha família à volta de uma lareira a dar presentes, com crianças à minha volta. Talvez seja isso. Não há Natal sem crianças.
A minha ex-namorada não é do subúrbio. Uma pessoa impaciente e ansiosa, andou numa escola primária noutra parte da cidade. A escola primária em que ela andou já não existe. Foi transformada numa rotunda, ao pé da casa dela. Por isso esta noite, dois anos ou mais depois, perdoo-lhe tudo.
PS: Os erros ortográficos deste texto não são só culpa deste computador não ter corretor ortográfico. Também são saudosismo.
Aconteceu que hoje saí mais cedo. Eram umas três horas quando o patrão disse que por hoje estávamos terminados. E por hoje terminados arrumei as coisas. E saí.
Este inverno tem chovido imenso em Lisboa. Todos os dias chove e a humidade no ar é imensa, parece que conseguimos comê-la. Além disso, está muito frio. Atravessava a IC19, vazia (uma visão incrível). Chovia. Aquela estrada tão deserta e eu ali, o seu único dono. Aquela estrada tão deserta e eu a sentir-me tão sozinho.
Pensei que ainda queria ver alguma pessoa antes de ir dormir. Algum ser humano, alguém vivo. Antes de partir para o dia de amanhã, queria sentir que hoje ainda olhava para alguém que nunca tivesse visto antes, ou que fazia alguma coisa que nunca tinha feito.
Ia na IC19 e saí na primeira saída que apareceu. Fui conduzindo pelo subúrbio a dentro, sem saber para onde ia. Fui atravessando as ruas desertas e húmidas, iluminadas pela luz quente laranja.
Não sei como é ao pé das vossas casas, nem que cor vocês associam à noite. Mas aqui nos subúrbios, à noite é tudo laranja. As luzes laranja reflectiam-se nas poças de água na estrada escura, nas janelas escuras e nas montras escuras. Ninguém na rua. Não encontrei nem uma pessoa.
Caramba, nem um gangue! No meu tempo, no subúrbio à noite, havia gangues. Haviam grupos de pessoal novo a atirar caixotes do lixo para a estrada. Havia pessoal sentado em muros a fumar charros. Agora já não há nada. Só pilhas e pilhas de janelas sem luz amontoadas em forma de prédios (às vezes, com sorte, vemos a meio da noite uma luz de cozinha acesa - basta ver a cor da luz para se saber que é uma cozinha, assim uma espécie de branco embaciado - onde alguma mulher bebe chocolate quente por não conseguir dormir ou algum filho se masturba - nesses casos normalmente só vemos a luz da televisão acesa).
À noite no subúrbio, não se vendo gente, vemos milhões de carros vazios, assim uma espécie de carcaças abandonadas que são os corpos reais das pessoas que ficam ali quando elas se despem e levam o essencial para casa.
Que não haja ninguém na rua por estar frio eu ainda posso tentar perceber, mas que à noite no subúrbio, já nem nos carros se veja animação? É muito triste. Nem um só vidro de carro embaciado, nem um só par de pernas nuas oscilando. Depois dizem que não há bebés. Se não se faz amor à noite faz-se quando?
Antigamente, no subúrbio, fossem gangues, fossem apaixonados, havia pelo menos pessoas que escolhiam ser livres, tanto quanto podiam. Não eram capitalistas. Mesmo que fossem só adolescentes, eram pessoas que escolhiam não se limitar a seguir um plano. Tinham a ousadia de sair de casa à hora que quisessem. A grande coragem de se abrir às experiêcias de vida e à natureza selvagem e incontrolável do Ser Humano. Felizes nós porque já não há bandidos à noite na rua. Sim, não há porque estão presos a um estilo de vida que nos afasta uns dos outros. Presos à solidão.
Continuei a conduzir. A ver os prédios, as lojas, os cantos misteriosos. E foi assim que cheguei à minha escola primária.
A penúltima vez que lá tinha ido fora há uns dois anos. A última, foi num sonho que tive o Verão passado quando dormi na casa nova do meu amigo mais antigo, com quem passei a escola primária.
Não sei como acontece com vocês, mas comigo, eu sonho sempre com os lugares muito adulterados em relação à realidade. Nos meus sonhos, todos os lugares são uma construção enorme, grandiosa, épica e labiríntica sobre a estrutura base do lugar com que sonho.
Mas vendo a minha escola primária, às três e tal da manhã, cá de fora das grades, ela parecia igual ao sonho. A minha escola primária estava mais real do que a realidade!
Andei de carro à volta dela. Parei o carro e saí. Ali estava eu, um grandecíssimo homem, enorme e de barba, que se eu vira ali à quinze anos atrás me faria sentir muito medo.
Olhei através das grades, à procura da árvore à qual trepávamos, eu e os meus amigos, que se chamava Casa da Árvore. E ela está lá. Vinte anos depois. E também cresceu. Está já velha, desgastada e enfraquecida. No meio de coisas novas.
Olhei melhor e agora vi muitos lugares que não reconheci, muitos espaços que não pareciam os mesmos. Pensei em saltar a grade da escola, mas não saltei. Queria partir à descoberta daquele lugar da minha infância.
Continuei a olhar, a tentar distinguir algo conhecido no escuro. E foi aí que as vi. Num cantinho escuro do pátio, entre dois muros, no espaço de uns quatro metros quadrados, continuam a formar-se, com a chuva e a terra, as mesmas poças de lama de sempre.
Vinte anos de poças de lama no mesmo lugar.
Uma das memórias antigas que tenho daquele espaço (que é muito mais que uma escola) é de, no cantinho ao pé da Casa da Árvore, passar a correr por cima das grandes poças de lama, atrás de outro menino com um pau na mão, um rapaz de óculos redondos um ano mais velho que eu (que hoje continuo a ver passar na rua e com quem nunca falei), com uma camisola vermelha rota debaixo do braço, no sovaco, coisa que eu nunca vira antes, e de eu pensar Como é que ele fez aquele buraco debaixo do braço? e de ele começar a atirar bolas de lama para os outros e eu e mais dois amigos nos desviarmos para não apanharmos também, porque as nossas mães iam ficar lixadas se chegássemos com uma bola de lama estampada nas nossas camisolas. Isto depois de termos estado a brincar à volta das grandes poças de água e lama que ali sempre se formavam enquanto começara já a chover e as contínuas já tinham chamado todos os meninos mas nós tínhamos desobedecido e ficado ali sozinhos até termos ficado só nós, rebeldes, o silêncio cinzento e a chuva, naquele lugar algo escondido (sim, porque as minhas escolas sempre foram construídas em terrenos íngremes, pelo que tinham montes de patamares que permitiam milhares de esconderijos), a sentirmos o recreio vazio, a brincar ao som da água a cair, com um silêncio próximo do que ouvi esta noite enquanto olhava para aquelas mesmas poças, que não esperava jamais reencontrar, que só vi por, no escuro, reflectirem as luzes laranja do meu país à noite.
E foi naquelas poças que encontrei a pessoa que estava à procura de ver antes de dormir. Esta noite recolhi o menino que me pareceu que tinha ficado vinte anos ali, à chuva e ao frio, com a camisola suja de lama e as costas molhadas, à porta da escola à minha espera, e que eu me tinha esquecido de vir buscar.
Abri-lhe a porta. Entrámos os dois no carro. E partimos.
Ao voltar para casa, no meu carro preto de pára-choques rebentado, senti uma força estranha no peito. Sabem aquela sensação, quando é Natal, de que o Natal veio demasiado cedo este ano? É que sinto que para mim o Natal foi hoje. O dia em que senti que era Natal foi hoje. Senti-o tão forte. Apetece-me estar com a minha família à volta de uma lareira a dar presentes, com crianças à minha volta. Talvez seja isso. Não há Natal sem crianças.
A minha ex-namorada não é do subúrbio. Uma pessoa impaciente e ansiosa, andou numa escola primária noutra parte da cidade. A escola primária em que ela andou já não existe. Foi transformada numa rotunda, ao pé da casa dela. Por isso esta noite, dois anos ou mais depois, perdoo-lhe tudo.
PS: Os erros ortográficos deste texto não são só culpa deste computador não ter corretor ortográfico. Também são saudosismo.
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
O som do mundo
Foi por acaso que fiquei muitos dias sem me cruzar com uma televisão e que, nesses dias, também não ouvi rádio, não pus discos a tocar e o meu telemóvel esteve sem som.
E nem sequer teria dado conta de nada disto. Ou não tivesse subitamente, de um segundo para o outro, deixado de ouvir barulhos. Num segundo de pura lucidez sensorial, desapareceram aquelas canções que trauteava interiormente em frenesim, repetidas sem parar a todas as horas do dia. Deixei de ouvir um constante genérico de filme a passar na minha cabeça. Como se o ruído tivesse sido desligado. Como se tivese ficado surdo instantaneamente.
Mas não era surdez. De repente tudo tinha um som.
Estava sentado em silêncio e num sopro comecei a ouvir o Mundo.
E tudo passou a ouvir-se. Todos os objectos passaram a estar presentes, e eu ganhei uma nova forma de os sentir. Os sons naturais passaram a ser uma sinfonia e recuperei a minha ligação com o mundo.
E digo-vos, o som do Mundo é alucinantemente belo.
E nem sequer teria dado conta de nada disto. Ou não tivesse subitamente, de um segundo para o outro, deixado de ouvir barulhos. Num segundo de pura lucidez sensorial, desapareceram aquelas canções que trauteava interiormente em frenesim, repetidas sem parar a todas as horas do dia. Deixei de ouvir um constante genérico de filme a passar na minha cabeça. Como se o ruído tivesse sido desligado. Como se tivese ficado surdo instantaneamente.
Mas não era surdez. De repente tudo tinha um som.
Estava sentado em silêncio e num sopro comecei a ouvir o Mundo.
E tudo passou a ouvir-se. Todos os objectos passaram a estar presentes, e eu ganhei uma nova forma de os sentir. Os sons naturais passaram a ser uma sinfonia e recuperei a minha ligação com o mundo.
E digo-vos, o som do Mundo é alucinantemente belo.
sábado, 24 de janeiro de 2009
A alma da pátria
Portugal, este país-pergunta. Este país-mistério. Este país que nenhum de nós compreende e que é tão fascinante. O país que criou o Brasil (!), o país minúsculo que rebentou na Ibéria e nasceu à força de querer existir. Um país que ninguém sabe o que está a fazer. Um país que cada vez mais parece só Alma. Cada vez mais pobres, cada vez mais humildes (humildade é virtude). Um país que não é só o seu povo, nem só as suas elites, um país que é uma ideia incrível.
Um país mistério que ninguém sabe para onde vai. E a porta desse país, a porta da Europa para a vastidão do mundo, tem agora devolvida a si a sua proa, o Cais das Colunas. Mas as indecisões quanto ao futuro do Terreiro do Paço são o símbolo da indecisão do que fazer a este país que o contém.
Há muita gente que acha que se devia tornar o Terreiro do Paço numa espécie de grande esplanada à espanhola. Consagrariamos assim definitivamente a boémia nacional e assumiríamos que somos uma nação de foliões. Podia ser bom. Há também quem ache que talvez se devesse tirar de lá os ministérios e fazer, quem sabe, uns hotéis para ingleses, umas lojas caras, à fracesa, dando assim sentido ao nome Praça do Comércio. Poderíamos assumir assim melhor a nossa humildade e carácter servil, e ser criados dos ricos. Porque quem leu o que disse Jesus sabe que a pobreza é uma virtude. Há ainda, quem sabe, outras opções, como fazer dele, por exemplo, um jardim, num estilo mais ecologista tipo norte da Europa.
Eu não sei, mas acho que não. Acho que devíamos simplesmente limpá-lo, tirar lá os carros a passar à volta, conferir-lhe a dignidade do silêncio, e deixá-lo como está, consagrando-o definitivamente como um símbolo da alma de portugal. Um relicário da nossa identidade. E deixá-lo em repouso, no mais próximo que se conseguisse de torná-lo um Templo. Sempre iluminado à noite como tem estado, de frente para o mundo, um país que é uma porta aberta para o oceano. Com aquele relógio no meio de anjos, a contar o tique-taque do nosso futuro.
Um país mistério que ninguém sabe para onde vai. E a porta desse país, a porta da Europa para a vastidão do mundo, tem agora devolvida a si a sua proa, o Cais das Colunas. Mas as indecisões quanto ao futuro do Terreiro do Paço são o símbolo da indecisão do que fazer a este país que o contém.
Há muita gente que acha que se devia tornar o Terreiro do Paço numa espécie de grande esplanada à espanhola. Consagrariamos assim definitivamente a boémia nacional e assumiríamos que somos uma nação de foliões. Podia ser bom. Há também quem ache que talvez se devesse tirar de lá os ministérios e fazer, quem sabe, uns hotéis para ingleses, umas lojas caras, à fracesa, dando assim sentido ao nome Praça do Comércio. Poderíamos assumir assim melhor a nossa humildade e carácter servil, e ser criados dos ricos. Porque quem leu o que disse Jesus sabe que a pobreza é uma virtude. Há ainda, quem sabe, outras opções, como fazer dele, por exemplo, um jardim, num estilo mais ecologista tipo norte da Europa.
Eu não sei, mas acho que não. Acho que devíamos simplesmente limpá-lo, tirar lá os carros a passar à volta, conferir-lhe a dignidade do silêncio, e deixá-lo como está, consagrando-o definitivamente como um símbolo da alma de portugal. Um relicário da nossa identidade. E deixá-lo em repouso, no mais próximo que se conseguisse de torná-lo um Templo. Sempre iluminado à noite como tem estado, de frente para o mundo, um país que é uma porta aberta para o oceano. Com aquele relógio no meio de anjos, a contar o tique-taque do nosso futuro.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
Excerto de uma carta a uma pessoa muito especial
Pois é -------, sinto ter dentro de mim uma estrela que brilha cada vez mais forte e mais pesada (mas de um peso bom) e que me faz forte (fortíssimo) para enfrentar tudo na vida. Acho que se chama felicidade.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
A cura para o ateísmo
A tal falta de provas de que Deus existe é a mesma falta de provas de que Deus não existe.
A única coisa que podemos provar é que não sabemos.
A única coisa que podemos provar é que não sabemos.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
Ano novo com amigos velhos
O primeiro chá do ano foi tomado com os meus amigos.
Os amigos e amigas verdadeiros. Os que o quiseram tomar comigo.
A um ano completamente novo. É mentira que não seja nada de especial o que aí vem. É o futuro. A possibilidade de fazermos da vida de todos o que formos capazes.
No entanto, cheguei a pensar que 2009 seria nunca mais voltar a dormir. Depois de o novo ano chegar exactamente no mesmo lugar onde tinha chegado 2008, 365 dias antes, fomos repousar.
Dei por mim sozinho, numa cama de casal, num quarto antigo, com uma humidade antiga (da Serra de Sintra que é a nossa casa), onde antes dormiam os bisavós da minha querida amiga.
Sozinho. Eu, que acredito tão pouco em dormir sozinho.
Dormir só é divino se estivermos com alguém. Se não é só utilitário. E isso é feio. Dormir abraçado, dormir aninhado, dormir aconchegado, dormir amado, dormir partilhado. Cheios do calor que é humano. Isto é que é digno. Partilharmos juntos a inevitabilidade de sermos humanos e mortais. O respirar. A pele. Impossível sozinho.
Por isso não dormi.
Eu nunca tive insónias. Adormeço mal chego à cama, vou para a cama quando tenho sono. Durmo e é bom. Dormir é maravilhoso.
Mas ali estava eu, só comigo. Só numa cama desconhecida, num ano desconhecido. Os meus amigos dormiam nos quartos à volta e ouvia-os respirar e era bom senti-los nisso. Os amigos e amigas a mudarem de posição na cama. As camas a estalarem de serem antigas e eu com 365 dias em que pensar.
Este ano fomos menos que no ano anterior. Muitos amigas e amigos nossos estavam noutras casas, noutras festas, noutros lugares, com outras pessoas. Pessoas de quem, quero acreditar, não gostam mais do que gostam de nós. Mas o capitalismo destrói tudo.
Como o aquecedor que o meu patrão tem em casa. Quando todos os outros aquecedores do mundo falharam com ele, avariados por este desolador Inverno, o aquecedor do quarto de adolescente dele, com mais de vinte anos, resistiu. É ainda hoje esse que o aquece. Todos os outros eram mais recentes. Ainda há quem ache que o que é novo é bom só por ser novo?
No capitalismo, é preciso vender. Logo, as vendas não podem parar. Não basta o ritmo da vida humano, das pessoas - vender um aquecedor, um computador, um sofá, uma caneca de chá por pessoa que dure para toda a sua vida, e até para os filhos, netos, bisnetos. Não. Ao capitalismo o ritmo humano não chega.
As vendas não podem parar. Por isso é preciso vender muito mais que um. Como as pessoas não são estúpidas, a única forma de nos obrigar a fazê-lo foi pôr prazos de validade às coisas. Tudo é construído para se estragar. Primeiro estragava ao fim de dez anos. Depois cinco. Agora dois. Espero estar enganado, mas ainda vamos ver aquecedores descartáveis de uma só utilização. Um aparelhinho que se activa, aquece a sala e depois se deita fora. Um dia tudo vai ser consumível e, por isso, além de gerar lixo, será etéreo.
Quando tudo é etéreo, o tempo perde o seu valor. E sem o tempo, nada se pode construir. Quando somos apenas uns repositores de produtos, sentimentos, sensações, não temos nada para pôr em cima do que estava antes. Se temos constantemente de repor o básico nunca chegamos ao que vem depois. Ao grandioso. À vida humana.
Porque se não percebemos o tempo, também não percebemos que vamos morrer. E que antes de morrer temos de viver aquilo que queremos realmente viver, e não outras coisas. E que para viver essas coisas, é preciso tempo, para as construir.
É por vivermos numa sociedade sem tempo que é cada vez mais difícil fazer amigos. E mais difícil ainda, encontrar o amor de uma pessoa. (no amor, fazer e manter são sinónimos).
O amor - seja por um aquecedor, por um amigo ou por uma mulher - precisa de tempo. Nesta sociedade em que tudo é substituível, onde há gente que muda de casa de dois em dois anos (não sei como isto é possível - chamam-me materialista por ser apegado aos objectos importantes, mas materialismo é é ser capaz de mudar de casa e de carro e gostar), há gente que por eles, imagino que se pudessem, mudavam até de Mãe e de Pai todos os meses. Como mudam de mulher. E de amigos.
Com o consumo e os horários de trabalho, o capitalismo tirou-nos a capacidade de perceber que a vida é uma unidade única e contínua e não se divide em dias, como pensamos.
É assim que o capitalismo nos escraviza. Porque nos impede de construir coisas. De dar um passo hoje. Outro amanhã. Outro depois. E continuar assim durante vinte anos - o período áureo de cada pessoa - sem parar e, quem sabe, tornar-se um grande guitarrista, escrever um livro, ou fazer um filme. Isso é que é ser livre. Mas não. Hoje a vida é no máximo escrever num blogue. Compartimentando tudo em dias, em pequenas unidades, para que possam ser consumidas em pequenas doses, pois o corpo já não aguenta mais que uns dois ou três parágrafos. Os livros só ainda não são vendidos em fascículos com um capítulo cada porque no capitalismo as pessoas não são cultas e por isso não compram livros.
E é por isso que há pessoas que passam a Passagem de Ano com pessoas que não são os seus amigos. Que mal conhecem. E com quem nem gostam muito de estar. Mas toda a gente está solteira. E com o capitalismo é preciso aproveitar cada tempo livre, cada feriado, cada meia hora, para engatar. É preciso engatar gajas. É preciso engatar sem fim para se poder dormir acompanhado. Eu escolhi dormir sozinho, mas estar com os meus amigos nas doze badaladas. Com os meus amigos e amigas e com mais ninguém. Com nenhum desconhecido (havia o namorado de uma das minhas melhores amigas mas namorados são família).
E é pelos mesmos motivos que toda a gente está também tão empenhada em destruir o Natal. É bom destruir a Passagem de Ano, mas aos destruidores, dar cabo do Natal dá ainda mais prazer.
Nos dias que o antecederam, cada vez que liguei a rádio, havia alguém a destruir o Natal. Primeiro foi um jovem cozinheiro, a quem perguntaram, risonhos, aqueles que ainda acreditam Então e receitas para a consoada? Ao que o senhor responde, nervoso Ahh, eu não gosto do Natal, acho uma época muito hipócrita, desagradável, para mim são as mesmas receitas do resto do ano. Este cozinheiro não sabe certamente que a função mais digna do seu ofício da comida é ser elemento de união das pessoas em família, e que, ao contrário do que ele pensa porque certamente está sozinho, isto é mais importante que os prazeres egocêntricos de comer um delicioso rosbife.
No dia seguinte, foi o José Luis Peixoto, a quem pediram Então e umas canções de Natal, o que é que nos trazes? (talvez por saberem que no fundo as pessoas boas gostam do Natal, os locutores de rádio apelam todos ao espírito, mesmo que não sejam pessoas boas. E isso é bom e faz-lhes bem) ao que o escritor responde Ahh, eu gosto sempre de desconstruir o Natal e por isso trouxe aqui umas músicas diferentes, umas coisas africanas. Desconstruir o Natal? Mas o Natal precisa é de ser construído. O Natal é uma construção tão bonita, de que serve desmanchá-la? Desconstruí-la?
Um dia em que pelo menos em metade do mundo as pessoas apanham aviões, atravessam oceanos ou longos quilómetros de carro ou até só o centro da cidade, seja o que for, para estarem todas reunidas em família, numa lógica completamente anti-produtiva no sentido capitalista da expressão, apenas guiados pelo seu amor e vontade de estarem com a sua família, de volta à sua tribo, as pessoas que são sangue do seu sangue, não é um acontecimento espectacularmente bonito e original? Eu acho que é.
Dão-se prendas. Mais bonito ainda. Só vê nisto capitalismo quem é pobre de espírito (literalmente).
Fui à Livraria Bertrand comprar um livro para oferecer à minha adorada avó. Fui dos primeiros clientes do dia 24 de Dezembro. Estava lá às Nove e Trinta da manhã. Entro na estimada loja e a primeira coisa que oiço são os empregados a comentarem com o segurança, zangados O Natal é o pior dia do ano! enquanto arrastavam ao pontapé caixotes de livros. Fui à Fnac. Na caixa, estou a pagar e despeço-me da senhora da caixa com um sorridente Então feliz Natal, felicidades ao que me responde O Natal? Tomara que passe..
Os desconstruidores do Natal estão a ter um tal sucesso na sua empreitada, que conheço até pessoas que este ano não fizeram árvore de Natal. Adivinhe-se, foi para não gastar dinheiro em electricidade. Outros, por motivos ecológicos. Mas o capitalismo já pôs as pessoas todas doidas?
As pessoas que conspiram contra o Natal são as que não percebem que é o dia mais original do ano inteiro, em que tudo é mais diferente, em que as regras se invertem e na véspera do qual, ironicamente, é mais divertido trabalhar caso se trabalhe numa loja. No ano passado trabalhei numa perfumaria dia 24, aquilo é que foi diversão. O triplo dos funcionários na loja, todos em galhofa, como se estivessem perante uma guerra sem vítimas e por isso divertida. Uma multidão de pessoas, uma confusão anárquica de compras e de coisas a serem feitas. Os enfeites de Natal. Clientes fantásticos que há vários anos que só compram perfume naquele dia do ano. Mas sobre perfumes falo noutro dia.
Para mim, a Passagem do Ano é como um Natal para os amigos. Mas os amigos dignos desse nome, os verdadeiros, os de sempre, a família não-biológica. É por isso que não compreendo como podem as pessoas preferir passar o ano com conhecidos com quem podem estar todo o resto do ano. Seja a ver fogos de artifício, seja a fazer sexo, seja bêbados ou a dançar. Só pode ser com amigos. Passar o ano a conhecer pessoas novas é um desastre. É o único dia em que não se fazem novos amigos.
É, sim, o dia em que os amigos se juntam todos e pensam - por gestos e não por palavras - no que significa a vida que viveram juntos. Que partilharam todos estes anos. Que é de todos mas é uma só, porque sem um amigo não havia o outro.
Podem fazer-se viagens para o estrangeiro noutras férias. No Natal está-se com as pessoas com quem se deve estar (goste-se delas ou não se goste, o dever é tentar que a família funcione) e na Passagem de Ano está-se com as pessoas de quem se gosta. A não ser que não se tenha família e não se goste de ninguém.
Foi nisto que pensei quando estava ali na cama, com os meus amigos a dormirem à minha volta, naquela casa de pedra antiga.
Pensei que com a família e o patrão, são a maior riqueza que eu tenho.
Feliz ano novo para todos.
E profundamente obrigado aos meus quatro leitores por visitarem este blogue.
Os amigos e amigas verdadeiros. Os que o quiseram tomar comigo.
A um ano completamente novo. É mentira que não seja nada de especial o que aí vem. É o futuro. A possibilidade de fazermos da vida de todos o que formos capazes.
No entanto, cheguei a pensar que 2009 seria nunca mais voltar a dormir. Depois de o novo ano chegar exactamente no mesmo lugar onde tinha chegado 2008, 365 dias antes, fomos repousar.
Dei por mim sozinho, numa cama de casal, num quarto antigo, com uma humidade antiga (da Serra de Sintra que é a nossa casa), onde antes dormiam os bisavós da minha querida amiga.
Sozinho. Eu, que acredito tão pouco em dormir sozinho.
Dormir só é divino se estivermos com alguém. Se não é só utilitário. E isso é feio. Dormir abraçado, dormir aninhado, dormir aconchegado, dormir amado, dormir partilhado. Cheios do calor que é humano. Isto é que é digno. Partilharmos juntos a inevitabilidade de sermos humanos e mortais. O respirar. A pele. Impossível sozinho.
Por isso não dormi.
Eu nunca tive insónias. Adormeço mal chego à cama, vou para a cama quando tenho sono. Durmo e é bom. Dormir é maravilhoso.
Mas ali estava eu, só comigo. Só numa cama desconhecida, num ano desconhecido. Os meus amigos dormiam nos quartos à volta e ouvia-os respirar e era bom senti-los nisso. Os amigos e amigas a mudarem de posição na cama. As camas a estalarem de serem antigas e eu com 365 dias em que pensar.
Este ano fomos menos que no ano anterior. Muitos amigas e amigos nossos estavam noutras casas, noutras festas, noutros lugares, com outras pessoas. Pessoas de quem, quero acreditar, não gostam mais do que gostam de nós. Mas o capitalismo destrói tudo.
Como o aquecedor que o meu patrão tem em casa. Quando todos os outros aquecedores do mundo falharam com ele, avariados por este desolador Inverno, o aquecedor do quarto de adolescente dele, com mais de vinte anos, resistiu. É ainda hoje esse que o aquece. Todos os outros eram mais recentes. Ainda há quem ache que o que é novo é bom só por ser novo?
No capitalismo, é preciso vender. Logo, as vendas não podem parar. Não basta o ritmo da vida humano, das pessoas - vender um aquecedor, um computador, um sofá, uma caneca de chá por pessoa que dure para toda a sua vida, e até para os filhos, netos, bisnetos. Não. Ao capitalismo o ritmo humano não chega.
As vendas não podem parar. Por isso é preciso vender muito mais que um. Como as pessoas não são estúpidas, a única forma de nos obrigar a fazê-lo foi pôr prazos de validade às coisas. Tudo é construído para se estragar. Primeiro estragava ao fim de dez anos. Depois cinco. Agora dois. Espero estar enganado, mas ainda vamos ver aquecedores descartáveis de uma só utilização. Um aparelhinho que se activa, aquece a sala e depois se deita fora. Um dia tudo vai ser consumível e, por isso, além de gerar lixo, será etéreo.
Quando tudo é etéreo, o tempo perde o seu valor. E sem o tempo, nada se pode construir. Quando somos apenas uns repositores de produtos, sentimentos, sensações, não temos nada para pôr em cima do que estava antes. Se temos constantemente de repor o básico nunca chegamos ao que vem depois. Ao grandioso. À vida humana.
Porque se não percebemos o tempo, também não percebemos que vamos morrer. E que antes de morrer temos de viver aquilo que queremos realmente viver, e não outras coisas. E que para viver essas coisas, é preciso tempo, para as construir.
É por vivermos numa sociedade sem tempo que é cada vez mais difícil fazer amigos. E mais difícil ainda, encontrar o amor de uma pessoa. (no amor, fazer e manter são sinónimos).
O amor - seja por um aquecedor, por um amigo ou por uma mulher - precisa de tempo. Nesta sociedade em que tudo é substituível, onde há gente que muda de casa de dois em dois anos (não sei como isto é possível - chamam-me materialista por ser apegado aos objectos importantes, mas materialismo é é ser capaz de mudar de casa e de carro e gostar), há gente que por eles, imagino que se pudessem, mudavam até de Mãe e de Pai todos os meses. Como mudam de mulher. E de amigos.
Com o consumo e os horários de trabalho, o capitalismo tirou-nos a capacidade de perceber que a vida é uma unidade única e contínua e não se divide em dias, como pensamos.
É assim que o capitalismo nos escraviza. Porque nos impede de construir coisas. De dar um passo hoje. Outro amanhã. Outro depois. E continuar assim durante vinte anos - o período áureo de cada pessoa - sem parar e, quem sabe, tornar-se um grande guitarrista, escrever um livro, ou fazer um filme. Isso é que é ser livre. Mas não. Hoje a vida é no máximo escrever num blogue. Compartimentando tudo em dias, em pequenas unidades, para que possam ser consumidas em pequenas doses, pois o corpo já não aguenta mais que uns dois ou três parágrafos. Os livros só ainda não são vendidos em fascículos com um capítulo cada porque no capitalismo as pessoas não são cultas e por isso não compram livros.
E é por isso que há pessoas que passam a Passagem de Ano com pessoas que não são os seus amigos. Que mal conhecem. E com quem nem gostam muito de estar. Mas toda a gente está solteira. E com o capitalismo é preciso aproveitar cada tempo livre, cada feriado, cada meia hora, para engatar. É preciso engatar gajas. É preciso engatar sem fim para se poder dormir acompanhado. Eu escolhi dormir sozinho, mas estar com os meus amigos nas doze badaladas. Com os meus amigos e amigas e com mais ninguém. Com nenhum desconhecido (havia o namorado de uma das minhas melhores amigas mas namorados são família).
E é pelos mesmos motivos que toda a gente está também tão empenhada em destruir o Natal. É bom destruir a Passagem de Ano, mas aos destruidores, dar cabo do Natal dá ainda mais prazer.
Nos dias que o antecederam, cada vez que liguei a rádio, havia alguém a destruir o Natal. Primeiro foi um jovem cozinheiro, a quem perguntaram, risonhos, aqueles que ainda acreditam Então e receitas para a consoada? Ao que o senhor responde, nervoso Ahh, eu não gosto do Natal, acho uma época muito hipócrita, desagradável, para mim são as mesmas receitas do resto do ano. Este cozinheiro não sabe certamente que a função mais digna do seu ofício da comida é ser elemento de união das pessoas em família, e que, ao contrário do que ele pensa porque certamente está sozinho, isto é mais importante que os prazeres egocêntricos de comer um delicioso rosbife.
No dia seguinte, foi o José Luis Peixoto, a quem pediram Então e umas canções de Natal, o que é que nos trazes? (talvez por saberem que no fundo as pessoas boas gostam do Natal, os locutores de rádio apelam todos ao espírito, mesmo que não sejam pessoas boas. E isso é bom e faz-lhes bem) ao que o escritor responde Ahh, eu gosto sempre de desconstruir o Natal e por isso trouxe aqui umas músicas diferentes, umas coisas africanas. Desconstruir o Natal? Mas o Natal precisa é de ser construído. O Natal é uma construção tão bonita, de que serve desmanchá-la? Desconstruí-la?
Um dia em que pelo menos em metade do mundo as pessoas apanham aviões, atravessam oceanos ou longos quilómetros de carro ou até só o centro da cidade, seja o que for, para estarem todas reunidas em família, numa lógica completamente anti-produtiva no sentido capitalista da expressão, apenas guiados pelo seu amor e vontade de estarem com a sua família, de volta à sua tribo, as pessoas que são sangue do seu sangue, não é um acontecimento espectacularmente bonito e original? Eu acho que é.
Dão-se prendas. Mais bonito ainda. Só vê nisto capitalismo quem é pobre de espírito (literalmente).
Fui à Livraria Bertrand comprar um livro para oferecer à minha adorada avó. Fui dos primeiros clientes do dia 24 de Dezembro. Estava lá às Nove e Trinta da manhã. Entro na estimada loja e a primeira coisa que oiço são os empregados a comentarem com o segurança, zangados O Natal é o pior dia do ano! enquanto arrastavam ao pontapé caixotes de livros. Fui à Fnac. Na caixa, estou a pagar e despeço-me da senhora da caixa com um sorridente Então feliz Natal, felicidades ao que me responde O Natal? Tomara que passe..
Os desconstruidores do Natal estão a ter um tal sucesso na sua empreitada, que conheço até pessoas que este ano não fizeram árvore de Natal. Adivinhe-se, foi para não gastar dinheiro em electricidade. Outros, por motivos ecológicos. Mas o capitalismo já pôs as pessoas todas doidas?
As pessoas que conspiram contra o Natal são as que não percebem que é o dia mais original do ano inteiro, em que tudo é mais diferente, em que as regras se invertem e na véspera do qual, ironicamente, é mais divertido trabalhar caso se trabalhe numa loja. No ano passado trabalhei numa perfumaria dia 24, aquilo é que foi diversão. O triplo dos funcionários na loja, todos em galhofa, como se estivessem perante uma guerra sem vítimas e por isso divertida. Uma multidão de pessoas, uma confusão anárquica de compras e de coisas a serem feitas. Os enfeites de Natal. Clientes fantásticos que há vários anos que só compram perfume naquele dia do ano. Mas sobre perfumes falo noutro dia.
Para mim, a Passagem do Ano é como um Natal para os amigos. Mas os amigos dignos desse nome, os verdadeiros, os de sempre, a família não-biológica. É por isso que não compreendo como podem as pessoas preferir passar o ano com conhecidos com quem podem estar todo o resto do ano. Seja a ver fogos de artifício, seja a fazer sexo, seja bêbados ou a dançar. Só pode ser com amigos. Passar o ano a conhecer pessoas novas é um desastre. É o único dia em que não se fazem novos amigos.
É, sim, o dia em que os amigos se juntam todos e pensam - por gestos e não por palavras - no que significa a vida que viveram juntos. Que partilharam todos estes anos. Que é de todos mas é uma só, porque sem um amigo não havia o outro.
Podem fazer-se viagens para o estrangeiro noutras férias. No Natal está-se com as pessoas com quem se deve estar (goste-se delas ou não se goste, o dever é tentar que a família funcione) e na Passagem de Ano está-se com as pessoas de quem se gosta. A não ser que não se tenha família e não se goste de ninguém.
Foi nisto que pensei quando estava ali na cama, com os meus amigos a dormirem à minha volta, naquela casa de pedra antiga.
Pensei que com a família e o patrão, são a maior riqueza que eu tenho.
Feliz ano novo para todos.
E profundamente obrigado aos meus quatro leitores por visitarem este blogue.
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